domingo, 12 de dezembro de 2010

Sobre Celebrar e Se Lembrar

É tempo de CELEBRAR!!!

Tempo de CELEBRAR a felicidade,

Tempo de CELEBRAR a reconciliação,

Tempo de CELEBRAR os bons sentimentos que brotam em nossos corações,

Tempo de CELEBRAR a esperança,

Tempo de CELEBRAR a amizade,

Tempo de CELEBRAR a paz,

Tempo de CELEBRAR as boas ações,

Tempo de CELEBRAR a vontade de sermos mais humanos,

Tempo de CELEBRAR os sonhos,

Tempo de CELEBRAR a vinda do Menino Jesus.

Mas também é tempo de SE LEMBRAR!!!

Tempo de SE LEMBRAR que a felicidade é construída com pequenos gestos, diariamente, para que não se desgastem as relações que temos com os que vivem mais próximos a nós.

Tempo de SE LEMBRAR que não é preciso esperar um ano inteiro de rixas e rivalidades para se pedir perdão apenas no Natal,

Tempo de SE LEMBRAR que um mundo novo não se faz apenas com bons sentimentos, mas com ações firmes, constantes e perseverantes,

Tempo de SE LEMBRAR que esperança é pôr a mão na massa e acreditar que suas obras darão frutos, em vez de sentar pacientemente acreditando que alguém fará alguma coisa,

Tempo de SE LEMBRAR que o consumismo exacerbado é uma forma de construirmos tesouros para nós, mas que os verdadeiros tesouros não são feitos de ouro ou prata, mas são feitos de carne e osso, daqueles corações que, tendo nos cativado, chamamos de família e amigos,

Tempo de SE LEMBRAR que a Paz se edifica na justiça, e é fruto de uma sociedade satisfeita consigo e com os outros, e que, portanto, essa paz só pode advir de pessoas saciadas de um verdadeiro amor,

Tempo de SE LEMBRAR que o dia-a-dia está repleto de oportunidades para fazermos o bem, e o fazermos bem, e que é mesquinhez e pobreza de coração deixar para fazê-lo no final do ano, pois o bem deve perpassar cada minuto de nossas vidas,

Tempo de SE LEMBRAR que a vontade só é eficaz quando há liberdade, e que, por isso, devemos nos libertar dos vícios e medos que nos afligem para que possamos ser mais humanos,

Tempo de SE LEMBRAR que sonhos são a matéria-prima de corações que amam, mas são menos que pó se não se materializarem por meio de mãos que trabalham,

É tempo de SE LEMBRAR que não basta dizer “Vem, Senhor Jesus”, é preciso viver consciente de que Ele já veio e está entre nós, e que, se deixarmos ele fazer morada em nossas vidas, todo dia será

NATAL

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Confissões de uma mente rabugenta

GENTE!!! TUDO O QUE ESTÁ ESCRITO AQUI NESSE POST É BRINCADEIRA!!! hehehe =P
EU NÃO PENSO ASSIM!!! E, PRA QUEM NÃO SABE, ESTE ANO TIVE O MELHOR ANIVERSÁRIO DA MINHA VIDA!!! =D

Sério, todo ano é a mesma coisa.

Você faz promessas de alcançar objetivos inatingíveis, se propõe a ser uma pessoa melhor (como se isso fizesse diferença na vida de mais alguém que não só a sua), promete ser uma pessoa mais madura e mais vivida para o ano seguinte e aquele monte de outras coisas lá. 365 dias depois você percebe que não fez metade disso tudo - mais por sequer se lembrar do que prometeu do que por não conseguir realizar - e promete que: "Ah, esse ano vai ser diferente, estou mais maduro, mais decidido, tenho mais dinheiro, mais tempo". Aham, Cláudia, senta lá!

E não são só as promessas e os propósitos o problema, todo o clima que se forma nesse época do ano é propícia para uma encheção de saco tão grande, mas tão grande que faria inveja em Papai Noel.

Não, não tô falando de "ano novo, vida nova". Ainda não é sobre o ano novo. Eu tô falando de aniversário. É! Todo ano é a mesma coisa. E eu odeio muito tudo o que acontece.

Vamos começar pelo mais óbvio. Pensa: você está prestes a ficar mais velho, a acrescentar uma unidade (às vezes uma dezena) à sua idade, e ainda é obrigado a comemorar, festejar, como se tudo estivesse indo muito bem. Não, não está bem. Eu odeio ter que comemorar. Eu estou mais velho, os anos dourados da minha juventude estão passando, melhor, escorrendo pelas minhas mãos como água e eu, que nem sei se estou aproveitando toda essa riqueza, sou obrigado a agradecer por me aproximar inexoravelmente de um trágico fim temido por todos, quisto por ninguém! E ainda tenho que sorrir. Daqui a pouco serei um velho rabugento e reclamão usando chafões do tipo: "No meu tempo", "quando eu era jovem". Daqui a pouco, terão se passado os fins de semana em que eu saía com meus amigos e badalava até não poder mais, chegando junto das cocotinhas e fazendo sucesso nas quebradas. Vão-se os anos, ficam as rugas.

Outra coisa que odeio é aquela titia que não te vê faz tempo. Ai ai... "Oi titia, eu sei que estou maior do que há 10 anos atrás, quando você me viu pela última vez. Sim, titia, você se lembra que me pegou no colo e tudo o mais, o que só comprova duas coisas: 1- eu sou um ser humano normal que cresce como todos os outros, 2- você é velha! E não, eu não tomei chá de bambu ou coisa que o valha". Silêncio... ela lhe entraga um pacote embrulhado de presente. "Ao menos isso", você pensa. E quando abre, diz: "Oh titia, obrigado pelas meias e cuecas, eu estava mesmo precisando".

Hoje em dia tem gente dizendo que não está 1 ano mais velho, está um ano mais novo que ano que vem. Bom dia, amiguinho, ano passado você estava 2 anos mais novo que o ano que vem. O que dá na mesma. Matemática básica.

E a preparação, hein? Uma semana antes do aniversário sempre tem aquele velho amigo que pergunta: "E a comemoração? Vai ser quando e onde?". Oi, deixa eu te contar, eu já enviei por e-mail, tá? Se você não recebeu é por que não foi convidado. Mas você não diz isso. Sorri, coça a cabeça pra disfarçar e diz: "É, assim que eu decidir eu aviso". Chega em casa, abre o e-mail e convida o chato logo. Tem também aqueles que querem fazer o aniversário por você: "Marca numa pizzaria, avisa que é 19h30, mas chega às 19h pra reservar o local. Quer que eu mande e-mail pra todo mundo? Chamou o pessoal da faculdade? E do trabalho? Quer ajuda com alguma coisa? Posso te levar de carro pra você poder beber...". E intermináveis sugestões que terminam dando vontade a passar o dia em casa, longe de tudo e todos.

Enfim, cada ano que passa são comemorações acumuladas. É inevitável também comparar a desse ano com a do ano passado. "Eita, tem bem menos gente. Eu estou ficando chato, rabugento e afastando as pessoas, ou será que estou sendo mais seletivo, tendo só bons amigos, em vez de vários amigos?" No meu caso, é aparente que estou sendo mais seletivo, mas de qualquer forma, a comparação acontece e temo a chegada dos dias em que me tornarei chato e ranzinza. E esses dias, por mais que tardem, hão de chegar. Sei que hão.

E o pior é ter que aguentar as piadas desse ano, por causa de meus 24 anos. ¬¬

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sobre a morte e a vida

Quando chegou, uma folha seca desprendeu-se de um galho, desceu calma do alto em uma dança ao mesmo tempo lúgubre e bela. Rodopiava ao vento, lentamente, fazendo curvas, idas e vindas, voltas e revoltas, até pousar aos seus pés. Enquanto ele observava a exibição graciosa da natureza, pensava sobre a morte e a vida. Velórios sempre o faziam pensar. Poucas vezes se entristecera de verdade, mas sempre saía reflexivo, e até mesmo disposto. Disposto a viver a vida de uma forma nova, mais vivida e menos arrastada.

Entrou na capela e deparou-se com o corpo velado. A família em volta do pai, irmão, marido... todos choravam um pranto inconsolado, mas permaneciam firmes, com uma certeza estampada no rosto que só os que confiam podem ter. O choro era saudade, o choro era vazio, mas de forma alguma desespero. Encontrou os familiares, deu um abraço apertado e disse poucas palavras que para ele pareciam sem sentido naquele momento. Nessas horas, as palavras sempre sobravam.

Encontrou um canto meio vazio, meio escondido onde ficar. Estava só, entre amigos e família do falecido, mas não via nenhum conhecido presente. Permaneceu ali, observando, esperando o triste e necessário rito de despedida de um corpo já sem vida, imóvel. Era necessário despedir-se. Os últimos momentos em que os olhos veriam o rosto antes tão presente em suas vidas, mas que agora nunca mais seria visto. E nunca mais, pensou, é muito tempo!

Ouvia algumas conversas soltas ao seu redor:

- Como eu odeio velórios - disse uma senhora bem apessoada à sua direita, para o homem que deveria ser seu esposo. - É tão triste, nos faz pensar em coisas tão ruins.

O senhor ao lado apenas meneou a cabeça afirmativamente, enxugando os olhos da senhora com um lenço branco.

Ele já sabia disso. As pessoas, de forma geral, odeiam ter que partilhar a dor e, principalmente, senti-la. Mas, estranhamente, achava que esses momentos traziam muitos aprendizados. O problema das pessoas com velórios é que eles as obrigam a pensar na vida. E isso era algo muito sério. Pensar na vida exige de nós uma força e uma ousadia que teimamos em manter reprimidas e desacordadas. Pensar na vida e na morte exige de nós a coragem da mudança. Acontece que o ser humano vive com medo. É o medo de não dar conta, de lutar anos e anos por algo que talvez não alcance. Então, busca o caminho mais fácil. O caminho das coisas certas, que lhe proverão de certa felicidade e comodismo. Daí, para aliviar sua consciência de não estar enfrentando os desafios por conta de medos, afoga-se numa rotina desesperada, sem parar, sem refletir ou avaliar-se. E o medo esconde-se debaixo do tapete... escondido, invisível, mas ainda presente.

Então, a morte de alguém lhe coloca diante de outra questão. Não é mais o medo de não conseguir, de lutar e morrer na praia. A morte, o velório, confronta-o com o medo de morrer sem fazer da vida algo que valha a pena. E, necessariamente, a morte de alguém lhe dá o tempo necessário - uma tarde que seja, uma madrugada - para pensar no assunto. E tudo o que se quer é que aquilo acabe, as exéquias sejam ditas, o corpo enterrado, e com ele todos os pensamentos que tiram a paz placebo que a rotina entediante dá ao coração. Enfrentar seus próprios medos, eis o maior medo dos homens, eis do que eles fogem dia e noite...

Em outro canto, enquanto pensava todas essas coisas, havia um padre conversando com a esposa. Ele a consolava com palavras catequéticas, teológicas. Palavras que encontravam o racional facilmente, mas que teriam que enfrentar uma longa jornada até chegar ao coração.

- Ele agora está no descanso eterno. Lembre-se que a tristeza da perda é nossa. Ele está bem, e não poderia estar melhor.

Alguma coisa naquelas palavras estranhamente tocou fundo no seu ser. Ele já não ouvia a conversa ou sequer se dava conta de onde estava. Pensar na possibilidade de um descanso eterno fez com que saísse de si e se imaginasse em um paraíso onde apenas descansasse. Ele pensou que talvez isso fosse por demais entediante. O paraíso não deveria ser assim... Um eterno descanso. Mas, então, pensou nas tantas vezes em que se sentira esgotado, completamente sem forças para continuar em pé, resistindo bravamente para levantar-se num dia após o outro e outro...

Pensou que poderia existir esse descanso eterno. E pensou que gostaria muito de vivê-lo, mas apenas se chegasse cansado, exausto, consumido. Consumido... essa era a palavra. Decidiu que queria consumir-se até a última gota de suor, até o último pingo de sangue, buscando seus ideais, colocando em prática seus projetos, estando onde precisassem dele, esquecendo completamente de si e doando-se a todos. Imaginou que se conseguisse consumir assim a sua vida, desgastando-se em absoluto, um descanso eterno seria uma experiência mais que merecida.

E confrontou o medo de viver com a vontade de se entregar inteiramente a algo que valha a pena. Olhou para as pessoas a sua volta e, de repente, sentiu-se extremamente só em seus pensamentos. Por que ia tão longe nessas reflexões? De que lhe adiantavam? Não poderia simplesmente viver sem questionar-se?

Enquanto o corpo era levado à sepultura, com os vivos em procissão, pensou: "Tenho sempre que fazer uma escolha: encarar de frente, na solidão, o profundo que há em mim, ou ignorá-lo e apenas viver o dia-a-dia."

E voltou pra casa, mais vivo em seus pensamentos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Sobre celebrar a amizade

Vamos celebrar a amizade. Celebrar o riso solto, sincero, na certeza de que podemos ser nós mesmos e nada mais, sem medos ou receios de quem nos julgará.

Vamos celebrar o sol, o vento, o frio e a chuva. Celebrar o clima que vier, pois não importa como está o tempo, mas quanto tempo nós èstamos juntos.

Vamos celebrar o mar e a praia e desejar que as ondas tragam mais dias como esses, e levem nossa alegria para quem precisar, quem quer que sejam e onde quer que estejam.

Vamos celebrar a música, as vozes roucas. Celebrar os abraços e beijos e a vida que pulsa mais forte quando temos à nossa volta aqueles que queremos bem.

Sobre estar diante do mar

Sozinho... com o mar. Enfrento suas fracas ondas, cuidando pra não me perder de mim.

Vejo no oceano um barco a navegar distante. Será que o marinheiro vê que eu o vejo e invejo? Será que olha para mim de longe e ri de meu desejo tolo? Quisera agora estar em seu lugar, com o mar ao meu redor e nada mais, o infinto me cercando por todos os lados, e eu, pequeno, me deixando engolir. Será que, ao contrário de mim, ele deseja voltar e estar em meu lugar?

Fecho os olhos e escureço-me. O vento e o mar soam perto e levam pra longe minha alma, que só quer estar ali. E o pensamento voa, como a andorinha sozinha que se perdeu das outras, mas está feliz pela liberdade que adquiriu.

E bate forte em meu peito o desejo intenso de me lançar ao ar. Jogar-me ao mar, e deixar que as ondas me levem pra onde quiserem, sem rumo, sem direção, sem data pra voltar. Pois estou cansado de querer ser muito e me pergunto o que é a vida, senão o querer ser parte de um todo muito maior, como uma gota em um imenso oceano sem fim.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sobre a grandeza vs a pequenez

Enquanto vivo minha pequena vida e elevo-me à estatura de um adulto sério, o mundo ignora-me e acontece ao meu redor. Olho longe, no horizonte bem distante, entre o céu azul e o azul do mar. Ali tudo parece terminar. Mas o que aparenta ser o fim é apenas o começo de uma longa jornada. Pois o oceano continua, e continua... além do infinito, que não pode ser alcançado só.

E no profundo abismo do oceano, tão longe quanto pode ir a luz, e até um pouco mais, uma explosão de vida respira alheia a tudo o que chamo de importante. E no alto do céu, tão alto quanto eu possa ver, e até um pouco mais, o ar inspira infinitude, rebaixando-me à altura de um ser tão pequeno e insignificante, e até um pouco mais.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sobre uma flor

Certa vez, me vi parado diante de uma flor, encantado com a sua pequenez e insignificância. Não, não estava apreciando a sua beleza, sentindo seu perfume ou coisa que o valha. Apenas olhava para ela e me dava conta da sua falta de importância. Apenas uma flor dentre outras tantas, num jardim no meio da cidade movimentada, num local onde não havia bancos para sentar ou calçada para descansar. Uma flor que não contribuía em nada para ninguém.

Permaneci ali, pensando, buscando um motivo para querê-la bem ou razões para considerá-la especial, afinal, todo ser criado deve ter sua importância na magnífica roda da vida... mas não encontrei... Nenhum dos argumentos que me impus foram suficientes para me convencer. E cheguei à fatídica conclusão: aquela flor não tinha valor.

E, tristemente, segui meu rumo para casa. Meu pensamento, no entanto, ficou para trás. Sem encantos, sem perspectivas de ser algo para alguém, sua vida passaria despercebida por todos os outros habitantes do planeta Terra. Provavelmente, eu havia sido - e continuaria sendo - o único a parar para olhá-la, o único que tirara algum pequeno proveito de sua mera existência sem sentido e sem cor. Se ela tivesse olhos, eles esbanjariam solidão e medo e se tivesse lábios eles estariam cerrados, incapazes de se abrir em um sorriso, por breve que fosse.

Assaltado por pensamentos tão estranhos e atormentado pela dor inexistente de uma flor, vi-me incapaz de continuar o percurso que seguia. Parei. Dei meia-volta. Retornei para o jardim que continha a flor. Voltei decidido a colhê-la e plantá-la em um vaso, em minha casa, para que vivesse junto de alguém, fazendo com que tivesse sentido sua brevíssima passagem entre nós.

Ao chegar no jardim, deparei-me com a flor sorrindo, satisfeita em estar ali. Constrangido e sem entender, fitei o olhar sobre ela por longo tempo, procurando compreender o porquê de sua felicidade. Sequer compreendia como ela sorria - na linguagem das flores, mas sorria. Cheguei a perguntar, em voz alta, como um louco que, em momento de insanidade, pensa poder falar com as coisas: "Por quê sorris?"; mas não obtive resposta.

Depois de um tempo, deixei-a a sós com sua felicidade sem motivos e voltei para casa. Naquele dia, rendi-me a uma conclusão inevitável, que, até então, não fazia parte de minha visão de mundo. Aquela flor, inútil e sem graça, me disse com sua existência breve e sem sentido que a vida não exige explicações.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sobre tomar para si

Foi uma experiência única, fantástica. Ele estava sentado no banco, apenas olhando para frente e contemplando a vida. Revisava os últimos dias, a correria, o cansaço e buscava dar um sentido a tudo aquilo por que passava. Aos poucos, uma paz tomava conta de si, mas sabia que tão logo saísse dali os tormentos continuariam.

Sem que ele notasse, ela se aproximou e sentou ao seu lado. Calada, recostou a cabeça em seu ombro e chorou. Ele, surpreso, apenas segurou sua mão e permaneceu ali, firme, sem questionar ou enchê-la de perguntas desnecessárias. O choro era amargo e ele sentia a respiração ofegante da garota tomar conta de todo o corpo dela.

Depois de um tempo, ela começou a falar. Não foram muitas as palavras, e nem explicavam tudo aquilo que ela sentia, ou o que a fazia chorar, mas foram tão intensas e cheias de dor que ele ficou intensamente comovido e perdido, sem saber o que fazer para ajudá-la.

- O que posso fazer pra te ajudar?

- Nada. Só esteja ao meu lado.

Ele permaneceu firme, mas chorou por dentro, desejando ardentemente que toda aquela dor lhe fosse transferida. Se ele pudesse, tomaria sobre si toda a angústia que estava no coração dela e juntaria às suas próprias, não importava o quanto ele mesmo passaria a sofrer, desde que ela fosse poupada da dor.

E ele desejou isso verdadeiramente. E quando o desejou, passou a compreender muitas coisas.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Sobre a estrada...

Às vezes me vejo sem a noção de estar em mim. Volto ao mundo real de repente, e percebo que por alguns minutos não estive aqui. Sensação estranha de viver sem estar presente, ou de estar presente sem viver. É uma leve e curta ausência do ser, seguida por um dar-se conta.

É que todo dia é sempre assim: o dia vai passando, a rotina se repete e eu esqueço da importância de sentir de novo - mas de maneira diferente - a mesma sensação de ontem e da semana passada. Pra quê? É tudo sempre igual. Ligo o motor na banguela, coloco no ponto-morto (não há melhor analogia), deixo o carro descer a ladeira... e as horas voam como o vento na janela, sem que eu passe a marcha, ou reduza ou faça a curva. Apenas sigo em frente e passo o dia sem perceber que sou eu o condutor, que ainda tenho a obrigação e o direito de dirigir a minha própria vida. Ainda tenho o dever - e ninguém o realizará por mim - de rumar para onde realmente quero chegar.

E ninguém o realizará por mim. Não há barreira policial me impedindo de seguir em frente na rotina e na mesmice. Toda a pista está vazia e livre para que eu continue o mesmo caminho, sempre e sempre, por quanto tempo eu desejar. Mas, quando a gente anda sempre para frente, não pode mesmo ir longe... diria o pequeno príncipe.

Talvez seja preciso virar, ou dar meia volta, sei lá. De repente - sem ser tão radical - parar num posto e comer algo, ou apenas aprecisar a paisagem. Tirar umas férias, quem sabe.

Quem sabe? Se houver combustível para isso...

Mas tlvez a estrada que eu tomei esteja mesmo me levando para um bom lugar... quem sabe?

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Sobre a vista da minha janela

Olho pela janela. Lá embaixo, nas ruas da cidade mal iluminada, contemplo vidas se perderem em um emaranhado de prazeres, contendas, vícios e ódios. Gargalhadas de desespero podem ser ouvidas em meu apartamento, enquanto sinto o frio gelar minhas mãos e pés. E a solidão gela meu coração.

Penso se haverá uma saída para o desespero. Tantos rostos inocentes que não tem para onde seguir, ou com quem conversar. Tudo que precisam é de um abraço, mas só o que lhes oferecem é um trago, ou uma arma. Aceitam, pois, sem culpa.

Sinto-me condenado a sobreviver nessa selva sem regras, sem paz. Culpo o mundo por permitir que tal situação se tenha instalado sob minha janela. Culpo o sistema, a religião, a política. Minhas mãos congeladas desenham palavras de consolo no ar úmido da janela que jamais chegarão a seus destinatários.

Lá embaixo, enquanto crianças se desviam de um caminho que nunca lhes foi apresentado, as sirenes soam, portas se abrem e olhos vermelhos inocentes encaram a arma da justiça e da paz. Chutes, choros e sangue. Correria, gritos. O riso vem fardado.

E assim, a sociedade vil segue seu rumo. E eu culpo o mundo, contemplando a cena na distância da minha janela.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Sobre uma conversa

Ficou atônito! Como assim, de graça? Nada nesse mundo é assim, de graça. Apesar de achar bem suspeito, aceitou, mas não sem antes questionar.
- Assim? De graça?
- É. De graça - respondeu o outro.
- Mas... mas eu... quanto é? Quanto você quer?
- Não quero nada, é de graça! - disse rindo levemente.
Olhou para aquilo que havia em sua mão. Ele recebera, de graça, e não era nem seu aniversário.
- Tá. Ok! Mas agora eu tenho que te retribuir de alguma forma. O que posso fazer por você?
- Nada. Não precisa fazer nada.
- Ok. Eu sei que não precisa, é de graça e aquela coisa toda. Mas agora eu quero retribuir. Não me sentirei bem se não retribuir.
- Então, não retribua. Não por isso.
Aquela conversa já o estava cansando. Ok. Iria pensar em algo pra dar de retribuição. Não precisava contar o que era, nem quando... era só dar de surpresa. Mas parecia que o outro estava entendendo o que ia acontecer, porque logo em seguida comentou:
- E se estiver pensando em fazer a mesma surpresa que eu, só por que está se sentindo obrigado a isso, pode esquecer. Não vai ser a mesma cosia. Nunca vai ser a mesma coisa. Por que eu já me antecipei. Eu já o presenteei, de graça.
- Puts. Mas então. Eu vou ter uma dívida pra sempre com você - disse, tentando achar uma saída para aquela situação embaraçosa.
- Sim. E não.
- Como assim? - ele não estava entendendo.
O outro respondeu, calmamente:
- Vai ser pra sempre, mas não é uma dívida, por que foi um presente e não precisa ser paga.
- E o que vai ser pra sempre, então?
- A sua gratidão. A lembrança da surpresa. A esperança de um dia receber outro presente assim, gratuitamente, e sentir-se amado como hoje.
A gratidão. O outro falara em gratidão e só agora ele percebia que não agradecera.
- Errr. É... Ok. Antes de mais nada, muito obrigado, viu? - disse timidamente.
- De nada. Literalmente, de nada.
Mas não era só isso. Não era só agradecer. Por que esse gesto tão repentino? Ele estava começando a ficar nervoso, por que não entendia. Pensou, antes de continuar.
- Ok -disse. - Agora, qualquer coisa que eu te faça, de certa forma, vai ser por retribuição a esse seu gesto. Querendo ou não, vai ser. E aí? Como fica?
O outro parou um tempo. Talvez não tivesse pensado nisso ainda. Agora, tudo era resposta. Nada mais seria uma simples ação, desprovida de sentido, pura, sem interesse.
- Então que assim seja.
- E tudo bem pra você? Vai ser tudo por retribuição, e nada vai ser natural.
- Não é retribuição, por que não se retribui um presente. E é natural, por que não é obrigado.
Agora ele estava nervoso, realmente.
- Não é por obrigação, mas é por retribuição. Eu quero retribuir - disse em tom forte - por que eu também te amo!
Silêncio.
Respiração forte... respiração leve.
- Ah - disse O outro depois de um momento. - Agora sim.
Ele sorriu. "É - pensou - agora sim".
- Boa noite, Pai.
- Boa noite, filho.
E as luzes se apagaram.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Sobre um meio sem fim

Quando deu por si, estava correndo. Corria com todas as forças de suas pernas, a respiração ofegante, desviando de troncos, raízes e galhos. Onde estava? Por quê corria? Quem sou eu? A noite era clara, mas a lua cheia iluminava apenas as copas das árvores e pouca luz atravessava o dossel da floresta até o chão. Tomy corria praticamente às escuras. Tomy? Quem é Tomy? Eu sou Tomy? Tomy. Esse é meu nome.

À medida em que corria, adentrava cada vez mais a floresta, que ia se tornando densa, e mais densa. Desviar-se dos obstáculos era difícil e por várias vezes Tomy quase caiu.

Eu não consigo mais. Será que posso parar? Algo - talvez a simples e pura adrenalina - dizia que ele deveria continuar correndo, que era esse seu destino, sua única chance. Arriscou olhar para trás pela primeira vez e pôde perceber ao longe, em meio a folhas e troncos, uma chama a se mover. Um lampião. Alguém carrega um lampião. E corre. Vem atrás de mim. Mas quem? Por quê? Cacete... Eu tenho que correr. Ou...

De um salto, sem ao menos saber como ou onde tinha aprendido e por que adquirira tal capacidade, Tomy agarrou-se a um galho que pendia a alguns metros do chão e com um impulso jogou sua perna por cima de um outro galho mais acima. Sentou-se, pôs-se de pé e escalou mais uns galhos até sentir-se seguro. Medo de altura eu já sei que não tenho.

Lá de cima, parado, evitando mover-se para não fazer qualquer barulho esperou. Esperou. Esperou...

Finalmente, ouviu passos se aproximando. Alguém corria muito... Espera. Os passos são muitos, o barulho é imenso. São vários. Tomy pôde ver abaixo de si uma pequena multidão. Passou um, passaram dois, talvez uns 10 ou mais ao todo. Todos corriam silenciosos. Todos atrás de mim? Que mal poderia ter feito a tanta gente? Serão a polícia? Alguns ficavam para trás, cansados, e a poucos metros de onde Tomy estava um rapaz parou. Ajoelhou-se e prostrou-se por terra, respirando com dificuldade.

- Hey, Argos - um homem voltava vindo atrás do jovem, espada em punhos. Vamos, precisamos estar todos juntos. Não vamos facilitar para o assassino.

- Eu não consigo mais - a voz do rapaz saía com dificuldade e rouca.

Ele parece ser bem jovem. Deve ter uns 15 ou 16 anos. Tem o físico magro, talvez de um corredor, não deve oferecer muitos riscos em uma luta corpo a corpo. Eu o venceria facilmente. Mas por que eu quero vencê-lo?

- Venha - disse o mais velho, aproximando-se. - Vou levar-lhe de volta. Aqui é perigoso.

- Não, pai. Não. Eu não posso desistir de novo.

- Mas se você não aguenta...

- Então, me deixe ficar aqui. Prefiro morrer com honra a fugir como um cachorro vira-lata.

Pai e filho? Desistir de novo? Morrer? Por que eu o mataria? Correm atrás de mim?

A conversa entre pai e filho continuou por mais algum tempo. Tomy calculou que a multidão já estivesse a um ou dois kilômetros de distância. Distância suficiente para ele correr no caminho oposto e ter uma boa vantagem. Mas talvez já estejam voltando. Não correriam tanto tempo a esmo, sem nenhuma pista do ladrão que procuram. Ladrão? Quem é o ladrão? Eu. Eu sou o ladrão. Roubei essa pedra que está no bolso da minha casaca.

Depois de muita conversa. O pai finalmente consentiu em deixar o filho e partiu correndo atrás da multidão que já ia longe. Argos esperou o pai partir antes de olhar para cima.

A espinha de Tomy gelou. Argos olhava diretamente para ele. Estava escuro lá embaixo, provavelmente o rapaz não o estava enxergando, mas sabia exatamente onde Tomy estava. Ele sabe que eu estou aqui em cima. Sabe exatamente a minha posição. Tomy paralisou-se por alguns segundos, pensando se deveria pular e correr, pular pelos galhos ou cair diretamente sobre o oponente, ou descer calmamente, por que afinal, Argos está me esperando para voltarmos. Argos está me esperando? Por que ele estaria me esperando?

- Vamos, Tomy. Desça logo.

- Como sabe que estou aqui? - por que eu respondi? Idiota.

- Essa árvore tá marcada, porra - respondeu Argos impaciente. A gente combinou que você iria subir nela e me esperar. Vamos. Daqui a pouco eles vão perceber que perderam a sua pista e vão voltar. Vamos, Tomy.

Quando Tomy desceu, pôde ver o corte em forma de lua minguante no tronco da árvore. Como soube onde subir? Nem mesmo vira a marca. Cacete. Eu não faço ideia do que está acontecendo.

- Isso. Tá com ela aí? - o olhar de Argos era de desejo. Sua língua passava por entre os lábios e de vez em quando o rapaz mostrava os dentes como uma besta feroz.

- Estou. Acho que estou. Com a pedra? É da pedra que você tá falando?

- Pedra? Onde você tá com cabeça, seu idiota. Ela não é só uma pedra. Ela é tudo.

Argos olhava para todos os lados, como se estivesse com medo de estar sendo observado. Aproximou-se de Tomy e disse ao seu ouvido:

- Deixe-me vê-la.

Eu não posso confiar nele. Seus olhos o traem, sua respiração é forçada e a temperatura do corpo indica nervosismo, farsa. Ele tá fazendo um grande teatro aqui. Filho da mãe, esse cara tá tentando me enganar. Mas o que ele quer com a pedra? O que eu quero com pedra? Que merda de pedra é essa?

Tomy não sabia o que fazer. Já ia levando a mão à pedra, ao bolso de sua casaca, quando ouviu pessoas se aproximando da direção em que a multidão correra. Eram seus perseguidores voltando. Eles haviam perdido muito tempo...

domingo, 29 de agosto de 2010

Sobre considerações

É, eu sei. Tenho andado sumido disso aqui. O cansaço é grande, os compromissos são muitos e poucas vezes a vontade de escrever tem prevalecido a toda a correria dessa vida. Preocupo-me de estar deixando de lado uma parte de mim, o escritor que quero ser, o usador de palavras ao vento que tem a ânsia de deixar um pouco de si pro mundo ouvir, ler. Mas há projetos maiores, é por eles que eu tenho me deixado levar. É por tudo aquilo em que um dia eu acreditei, e pelo que desejei dar a minha vida, meu tempo, empregar meus esforços, meus talentos. É preciso lembrar de vez em quando, que a escolha que fiz foi consciente e fruto de toda uma vida de experiências que me tem completado, que me tem formado, e que as renúncias serão necessárias para completar o caminho. É preciso lembrar, sempre! Se não, corre-se o risco de se acostumar com a vida, e achar que o que estamos fazendo é rotina chata e barata, quando, na verdade, é resposta de vida a um chamado.

Só pra constar: é uma delícia saber que estamos no lugar certo!!!

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre uma festa!

A sala tava cheia. Todos vestiam roupas das mais extravagantes. Coloridas, cheias de panos e brilhantes e colares e relógios. No canto, um cara tocava um piano preto enorme de cauda longa. Uma música animada que empolgava, fazia dançar e criava aquele clima de 'por favor, não pare a música!'. A conversa rolava solta. Os petiscos e as bebidas passavam nas bandejas e evaporavam num segundo. Era uma dessas festas cheias de amigos, na qual você gostaria de estar agora e da qual nunca iria querer sair.

Coisa simples. Vários amigos, música boa, bebida e comida a vontade. E você sabe que isto não é tudo na vida, e você sabe que busca coisas maiores, mas sabe também que tem hora que isso basta e que é tudo o que você quer!!!

Apenas dance! Apenas viva! Apenas seja!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Sobre andar por aí

Eu tenho andado pelas ruas, agasalhado até o pescoço, olhando as luzes da cidade, os rostos mascarados e os gatos, sorrateiros, se espreitando pelos cantos. Tenho andado cabisbaixo, mirando os pés cansados que se alternam na missão de me manter ereto. Enquanto a noite vai se adensando e tomando conta dos corações que dormem, eu só sinto a saudade pungente me envolver por completo, como névoa branca em fria manhã de outono. E a saudade está em todo lado a me envolver.

Reparo nos rostos que passam. Faces que brilham à luz de postes, demonstrando insegurança e medo. Sorrisos que apenas escondem o temor de não fazer suas vidas valerem a pena. Medo de que tudo seja apenas isso: passageiro.

O frio protege o homem da cidade. Ele pode se esconder atrás das roupas. E é o que todos fazem nesses dias de inverno. Passo pelas ruas e vejo apenas faces sendo carregadas por montes de tecidos. Mãos que se enfiam em bolsos aconchegantes e lá se sentem seguras de todo o perigo exterior.

E, não sei por que, tudo isso me faz lembrar você. Sozinha? Sorrindo? Embaixo de cobertas? Tomando um chocolate quente? Quantas possibilidades. Quanto de você não saberei mais. E enquanto você fala, talvez alguém esteja ouvindo. Talvez você só resmungue para as paredes, esperando que uma alma venha te salvar da solidão, da falta. Alguém como eu.

Ando pelas ruas, ignorando os passos que me seguem. Sinto uma mão se fazer presença e me tocar. Quando tudo é solidão, não se quer visitas inesperadas. É preciso ter hora marcada...

Eu me viro. Mãos no bolso.

Apenas mais um estranho. Ele estende a mão, eu ignoro. Ele me encara.

Ele diz:

- Espero que você possa me ajudar a me encontrar. Tenho andado por aí...

E eu completo, sem saber como sei. Sempre soube.

- ... procurando por alguém.

- Isso. Um rosto conhecido...

- ... nessa multidão de desesperados, eu sei.

Faz-se um silêncio.

- Alguém que saiba o que está fazendo - eu digo.

- Ou que não saiba, mas que esteja tranquilo com tudo isso - seu olhar paira distante, além do meu ombro, além das luzes atrás de mim, e mais além.

Eu finalmente aperto a sua mão. O frio congelante esgarça nossas peles. Ambos continuamos nossos caminhos, separados.

Eu tenho andado por aí, sempre procurando alguém a quem perguntar. Eu tenho andado por aí, querendo ouvir as respostas de perguntas que eu nem sei quais são. E foi bom saber que não estou só na busca.

Caminhando solitário, enquanto os primeiros raios atingem, tímidos, a cidade, eu sinto a ânsia de ter alguém ao meu lado. Talvez eu esteja me enganando. Eu tenho andado por aí, procurando por mais gente como eu.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Sobre ser vivo

Sempre que podia, João - nosso intrépido João -, vestia uma bermuda quadriculada e sua camisa alaranjada, calçava as chuteiras e ... ia passear a noite, em volta da quadra. A cada três passos, João dava um pulo. Três passos e um pulo, três passos e um pulo, contornando a quadra várias vezes. Era sempre a mesma roupa, no mesmo horário, o mesmo percurso e os mesmos passos e pulos. João fazia disso um ritual, uma forma de manter sua mente jovem, como se a cada vez que repetisse o ato, voltasse no tempo para a primeira vez que o fez.

É meio estranho, eu sei, mas João não é daqueles que se pode chamar normal. Tampouco era louco, ou demente. Não! João era um cara normal... digo, um cara não tão esquisito a ponto de ser taxado de louco, e nem tão pouco estranho a ponto de ser normal. De qualquer forma, ele era apenas um cara comum. Do tipo de gente que você não repara na rua e que você demoraria uma semana ou duas pra reparar na sala de aula.

Mas tinha esse hábito estranho, muito estranho, que ninguém entendia. Quando ele explicava que era um ritual para manter a mente jovem, as pessoas normalmente levantavam a sombrancelha - uma só - balançavam a cabeça lentamente e diziam:

- Ah, sim! - faziam uma pausa e - Aham.

E daí, seguia-se um silêncio constrangedor. Constrangedor para os outros, por que João nem percebia e achava que a pessoa realmente havia entendido. Afinal, o que havia de mais naquilo?

De vez em quando, algum vizinho ou amigo tentava levar a conversa mais a fundo tentando dissuadí-lo de continuar com aquele "hábito idiota", como diziam. João ouvia as súplicas com atenção e, então, tornava a explicar o motivo da repetição daquela atividade. E a pessoa dizia que já havia entendido, mas que não fazia sentido e que era no "mínimo ridículo" e como era seu amigo tinha a obrigação de mostrar a ele que fazendo aquilo as pessoas olhariam para João e o taxariam de louco por que, afinal, pessoas normais não fazem esse tipo de blahblahblahblahblah...

E a ladainha continuava, mas João já não prestava atenção e, a esse tempo, estaria olhando para uma borboleta voando, ou pensando no que comeria no almoço de amanhã. É que João também não conseguia manter muito o foco em conversas desinteressantes, e sua mente rapidamente se desviava para algo mais importante, como o ritmo dos passos da criança do outro lado da rua.

João não se entediava do hábito. Muito pelo contrário, achava extremamente divertido e animador. Vez ou outra não tinha tempo e acabava terminando o dia sem fazê-lo, e aí sentia falta e era como se acordasse no dia seguinte extremamente cansado. Às vezes, também, se cansava da insistência das pessoas de que aquilo era algo idiota. Ele não se importava com as reclamações, mas se cansava delas. Era chato ter que repetir sempre, durante dezenas de anos as mesmas conversas. E João não entendia por que muitos só vinham falar com ele sobre isso.

Sabe-se que João repetiu o ritual durante muitas dezenas de anos, até ser um jovem bem velho.

Certa vez, ninguém o viu durante um mês inteiro. Foram, então, até a casa dele e bateram na porta insistentemente, mas ninguém atendeu.

Chamaram a polícia e entraram à força. Era a primeira vez que alguém entrava em sua casa, que era simples, bem simples. Tinha apenas o essencial para se viver, alguns quadros nas paredes. e retratos nas mesas de uma família que ninguém nunca vira. Sua cama estava perfeitamente arrumada e o quarto estava empoeirado, como se ninguém houvesse passado ali durante muitos dias. João mantinha na cabeceira de sua cama um caderno de anotações. Na capa estava escrito: "O câncer da sociedade: a rotina chata e enfadonha". Dentro do caderno, que era bem antigo, em todas as folhas estava escrito: hoje eu fiz a mesma coisa que ontem.

João não foi encontrado no apartamento, mas no espelho de seu banheiro havia sua última declaração para os tolos que não o entendiam:

"Às vezes, a única forma de saber que se está vivo é poder sentir o mesmo prazer que a criança inocente ao brincar: ela não se cansa; repete os mesmos jogos, mas com espírito sempre novo. A gente não morre quando os dias são iguais, mas quando perde a capacidade de senti-los".

Alguns dizem que João se cansou de sua vida monótona e decidiu viajar pelo mundo, vivendo altas aventuras. Eu não sei. Acho que meu vizinho João tinha muito mais para ensinar do que o que pude aprender com aquela frase. Hoje, imagino que ele esteja por aí, repetindo o mesmo ritual em algum canto do mundo, tentando fazer as pessoas entenderem que é melhor ser um louco vivo a um morto ambulante.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Sobre várias coisas

Microconto 1

Ele chegou ao parque. Correu e se sentou para descansar. Ela sentou ao lado. Conversaram. No dia seguinte, ele estava lá, no mesmo banco, olhos fechados. Quando ela sentou, ele sorriu.

Microconto 2

O terremoto destruiu tudo ao redor. Perdeu a família e todos os bens. Não havia onde ficar ou descansar. Desconsolo. Procurou por seus amigos, a única coisa que lhe restara. Encontrou-os:
- Onde vocês estiverem, - falou - ali será meu lar.

Microconto 3

Ele voltou da guerra. Reencontrou-a depois de tanto tempo. Ela segurava uma criança no colo e ele perdeu as esperanças de que ela o tivesse esperado.
- É mãe?
- Aham.
- Qual o nome?
- João Pedro.
- Meu nome? - disse surpreso.
- Seu filho - respondeu chorando sorrindo.

Microconto 4

Acordou de um péssimo sonho. Suado, descobriu-se e se levantou da cama, mas o chão não estava lá. Caiu vertiginosamente durante horas. Acordou assustado! O despertador tocava. Era hora de seguir para o colégio. Quando chegou, os alunos o olhavam torto. Ele estava completamente nu. Sobressaltado, acordou. Dessa vez, não quis se levantar. Acordou.

Microconto 5

Alguém batia à porta. Alguém esmurrava a porta. Desceu correndo para atender. Abriu. A rua estava deserta, era tarde da noite. Estranhando, fechou a porta e se virou. No topo da escada agora estava um menino triste. Ela gritou e tentou sair, mas a porta estava trancada e não havia chave.

Microconto 6

Que dia! Não queria que ele acabasse mais. Mas era inevitável:
- Se as coisas boas durassem muito tempo, talvez não soubéssemos o quanto são importantes - pensou para si.
Todos já haviam ido embora, menos ela, que ainda vestia o casaco para sair.
- Hey. Fica mais um pouco?
E prolongaram a noite ao infinito, como dois que caminham pro horizonte.

Microconto 7

Ele pensou que poderia passar o dia todo escrevendo. Afinal, não hava muito o que fazer no trabalho. Colocou o fone e deixou que Dave Matthews ditasse as regras dos microcontos.

Microconto 8

Quase toda noite eles faziam a mesma coisa. Preparavam o jantar, comiam, conversavam e deitavam para se amar. Ela desejava mais. Ele percebeu, mas não sabia o que fazer. Finalmente, comprou passagens para a Europa. Ela sorriu e o abraçou. Lá, passeavam de dia. A noite, jantavam, conversavam e voltavam para o hotel para se amar. Oras, era a Europa!

Microconto 9

Naquele dia, na escola, ouviu que as crianças eram o futuro da nação. "Sinceramente", pensou, "não acho que os adultos estejam cuidando muito bem do que será meu". E recusou-se a herdar o mundo.

Microconto 10

O violino dava o tom. A bateria ritmava. O sax solava. O público se sentia imerso em notas musicais que fluíam do palco como que por encanto. A música tinha cor e criava um mundo inteiro.

Microconto 11

Quis um conto muito curto.

sábado, 31 de julho de 2010

Sobre o fim do mundo

E chegaram ao final do mundo. Dias e dias de viagem recompensados por aquela vista. Lá estavam eles, em fim, no último lugar onde se poderia chegar. E contemplavam o universo que se via além mar. À sua frente, não havia mais nada, senão um imenso abismo intocável em que estrelas faiscavam brilho e cometas que viajavam na densa escuridão.

Cortaram o silêncio sepulcral que reinava.

- Chegamos, meu bem. - disse a mulher, olhando profundamente nos olhos do amado.
- É incrível, não é? - respondeu o homem, maravilhado, encarando o infinito. - O fim do mundo, onde não há mais nada além do resto do Universo.

Sentaram-se na barca e por muitos dias se contentaram em apenas contemplar, em silêncio. Era um momento mágico, convidativo. O silêncio que precisam experimentar aqueles que chegam ao fim de tudo.

Eles tinham todo o resto do Universo pela frente, haviam atravessado todo o mundo conhecido, e tudo o que ficara para trás lhes parecia agora pó, e nada mais que pó.

E, assim, se entregaram à imensidão, ali mesmo, sentindo seus corpos se desfazerem à medida que suas vontades desapareciam. E viraram estrelas.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O mundo não é como eu quero! (Sem 'sobre' por que não é literatura)

Hoje me aconteceu, novamente, algo que só acontece muito, muito, muito raramente. Fiquei chateado, e mentalmente cansado, e só conseguia pensar em coisas negativas, tipo: isso não tá legal; aquilo tá faltando; fulano deveria fazer assim e não assado. Odeio quando isso acontece. Odeio mesmo.

De vez em quando, essas coisas acontecem mesmo. A vida é assim. Dessa vez, graças a Deus, foi um pouco diferente. Tirei desse sentimento ruim uma boa lição.

Eu estava triste. É. Juntando todos os cacos e bagaços de mim que ficaram espalhados pelo canto, acho que a conclusão a que posso chegar é essa: eu estava triste. Era uma tristeza carregada de responsabilidade, de expectativas frustradas, de medos aflorando... Enfim, era uma tristeza triste.

Depois de me remoer em solidão e me deixar pensar todos os podres que queria, uma simples reflexão me veio, como que num raio veloz e luminoso, à cabeça. Eu estava triste por que o mundo, naquele momento, não estava sendo como eu queria. O mundo a que me refiro são as pessoas, as situações e, de certo modo, eu mesmo, que estávamos "acontecendo" ali. Eu esperava uma coisa, eu queria uma coisa, eu acreditava em uma coisa, eu tinha opinião, mas nada disso estava sendo seguido. O mundo não estava me seguindo. Eu não era o centro das atenções, o senhor das decisões. E daí vinha minha tristeza. Das expectativas frustradas.

Que meleca! Lembrei-me de uma frase: "Acho que está mais do que na hora do mundo mudar para se adaptar a mim". Frasezinha engraçada, né? É do Calvin&Haroldo.

Pois é. Engraçadinha, mas extremamente falsa. O mundo não tem que mudar pra se conformar a ninguém. As pessoas são o que são e, por isso, agem como agem e, consequentemente, as coisas acontecem, quer você as queira, quer não. Não adianta ficar triste. Não, não adianta.

Mas se quiser ficar triste também... pode ficar. Não tem problema. Às vezes é bom.

Enfim, o importante é a reflexão. O mundo não para por que você tá de bubu. Ninguém vai te perguntar se você quer que seja diferente, para que tudo aconteça da forma que você quer. Não, ninguém vai.

Então faça o seguinte. Acolha as realidades que você não pode mudar. Se alegre com elas, se possível. Tire lições. Procure entender quais são as coisas que você pode mudar e tente mudar para que elas se adequem a você. Mas cuidado! Muito cuidado! Mesmo que você possa mudar uma situação, pense antes se a sua opinião, a sua ideia, o seu modo de ver a coisa é o modo certo. Às vezes você está chateado por não ser como você quer, mas se fosse, também não seria bom.

Lembre-se: diversidade é bom! Se tudo fosse conforme a sua vontade, o mundo provavelmente seria bem mais sem graça. Lembre-se: cada pessoa está vivendo uma experiência diferente, ainda que a situação seja a mesma. Elas têm visões e participações diferentes. Não precisam estar no seu ritmo, não precisam se preocupar como você se preocupa. Lembre-se: PARE de se preocupar. Daqui a 10 anos, essa tensão que você deixou tomar conta de você vai lhe tirar um pouco da saúde, e, quando você olhar pra trás, a situação que causou o stress vai parecer tão sem importância...

Acho que é isso.

O pior é terminar esse texto, com toda essa reflexão, ainda com aquele aperto no peito... Nada que uma boa noite de sono não resolva. E se não resolver, tudo bem. Nem tudo é como a gente quer.

Sobre um sonho

- Acorda, cabeça de bagre! Eu acho que o sol tá mais brilhante hoje, olha.
- Hm... hein?
- Acorda!!!
- Hein? Que horas são?
- São 8h30 ainda. Mas olha...
- Afff. Me deixa dormir, nem tem escola hoje.
- Levanta, idiota! Olha ali.
- Hã? Que foi? ... A escrivaninha? Que tem?
- Não a escrivaninha, em cima dela. A janela...
- Hã, tá fechada... fecha essa cortina.
- Não é pra olhar pra janela, imbecil. É pra olhar pela janela.
- Hã? ... ...

...

- UAU!!! O sol... o sol tá...
- Aham!
- Ele... ele tá mais claro?
- Isso! E lá fora, tá tudo diferente. Levanta daí, miolo-mole. Vem olhar.

...

- Me fala se não é impressionante. Eu acordei mais cedo e fui lá embaixo... tá incrível.
- Nossa! ... Os jardins tão todos verdes. É tipo... um verde brilhante.
- Isso! E olha ali, a piscina lá embaixo. Ninguém limpou, mas ela amanheceu assim... clarinha. Que delícia que deve tá.
- Hei. Olha ali os vizinhos. Eles... eles tão conversando? Vai dar briga.
- Não vai, não. Presta atenção, eles tão...
- Eles tão sorrindo! Ha ha! Olha ali, eles deram um abraço, antes de se despedirem.
- É! Logo os dois que brigam todo dia.
- Caracas... ooooou, e não tem nenhuma nuvem no céu. Tá limpinho.
- É! Cabeça-de-bagre, tem alguma coisa acontecendo.
- Vamo lá embaixo. Se veste aí.

...

- Então, pega a bicicleta e vamo dar uma volta.
- Vamo onde?
- Hm. Num sei, tava pensando em ir lá no lago. Deve ter alguma coisa legal.
- Tá. Bora.

...

- Bom dia, crianças. Cuidado por onde andam, não vão tropeçar numa pedra por aí.
- Bom dia, doutor. Obrigado.
- Você conhece ele?
- Não! Ele tinha mó cara de rabugento. Tá de boa hoje.
- Hehe. Que sonho.
- Cara, pedalar com essa brisa é uma delícia. Olha só...
- Se é. E presta atenção. Tá tudo tão colorido. Tá todo mundo sorrindo.
- Caraca, cabeça-de-melão. Olha ali no portão daquela igreja.
- Ouxi, vamo parar aqui um pouco.
- Caracas. Tem gente de tudo que é jeito. Tem indiano, negro, muçulmano, branco, moreno, japonês.
- E eles tão fazendo o quê?
- Sei lá, festejando alguma coisa. Deve ser missa de alguma coisa.
- Não é só missa, não. Cada um tá fazendo sua prece como conhece, olha só.
- E ninguém tá reclamando do outro. Eles tão é rezando e depois conversando. Que bizarro.
- How bizarre!
- Hey, tive uma ideia. Vamo passar embaixo do viaduto, onde o Jamanta mora.
- Boa ideia.

...

- Ô Jamanta!!! Tá aí?
- Nada do Jamanta, cara.
- Será que ele subiu de vida?
- De ontem pra hoje? Acho difícil.
- Cara, sei não, as coisas dele num tão mas aí.
- Será que a polícia levou ele?
- Ou. Por falar em polícia. Num tinha um ali, na rua que a gente virou? Cadê ela?
- É mesmo! Não vi. Tinha uma sorveteria no lugar.
- Ah! Vamo ali no orfanato.
- Pra quê? Cara... ali vai ter algo errado, não é possível.

...

- Bora, José. Enrola não. Esse parque tem que tá pronto até semana que vem.
- Hey, amigão. O que aconteceu com o orfanato?
- Derrubamos essa noite, por quê? Vai fazer falta?
- Bom, pra gente não. Mas pras crianças vai.
- Que crianças?
- Os órfãos?
- Foram todos adotados.
- Sério? Assim, de repente?
- Sério, garoto. Assim, de repente. Você queria que elas ficassem aí pra sempre?
- Não, não. Mas... e as crianças que forem abandonadas?
- Forem o quê?
- Abandonadas. Largadas pelos pais.
- Você tá bem, garoto? Por que um pai iria largar o filho.
- Sei lá. Por diversos motivos. Falta de dinheiro, vícios, raiva...
- Tá maluco, muleque. Isso tudo é passado. Deixa eu continuar aqui, se não essa obra para.
- O que vocês tão construindo?
- Um parque de diversão.
- Nessa área toda???
- Muleque, quer brincar nesse parque um dia?
- Quero, sim.
- Então, me ajuda a terminar. Vai brincar e volta daqui um mês.

...

- Caraca, cabeça de bagre. O que tá acontecendo?
- Sei não... parece um sonho.
- Um sonho, né? Caramba.
- É... um sonho.
- Cabeça de bagre, bem que podia ser verdade...
- Sei lá. Talvez um dia seja...
- É... ... Quem sabe. Um dia.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Sobre dias cinzas

Ela estava sentada na varanda, olhando a chuva pingar. Morava no final de uma rua pobre de uma cidade pequena, com um marido que a deixava sozinha aos fins de semana. Tivera um filho que, tão logo cresceu, sumiu de casa, sem prévio aviso, sem deixar rastros, apenas um bilhete de despedida.

O banco em que sentava era de madeira, presa por imensos pregos gelados, todo pintado de branco. As gotas que se juntavam em cima do telhado caíam em pequenas cascatas em frente a sua casa. O céu nublado e o vento gelado davam-lhe uma sensação de paz e conforto, algo que só a natureza poderia lhe proporcionar nesses dias cinzas.

Sim! Os dias eram cinzas, tingidos em uma tonalidade sem graça, incolor. A vida era mesmice e rotina. Uma rotina que ela detestava. Perguntava-se, enquanto ouvia o batucar da chuva, como havia parado ali. Sonhara tanto enquanto criança, tivera tantos anseios, tantas expectativas para o futuro. Preparou-se, esmerou-se... mas deixou tudo se derramar como água que escoa pelo ralo. Trocara todos os sonhos por uma paixão inconsequente. E agora estava ali, sozinha, deixando um vagabundo qualquer ditar as regras de sua vida. Um vagabundo que, apesar de tudo, ela ainda amava.

Só o que lhe sobrou foi a capacidade de se encantar. E era o que fazia ali, apenas observava a chuva, sentia o odor de grama molhada, deixava o vento esfriar-lhe o corpo e rezava a Deus que lhe ajudasse de alguma forma. E, assim, sentia-se viva!

Em algum outro canto da cidade, enquanto a chuva caía torrencialmente, ele se sentava em uma mesa de bar, com alguns poucos amigos, todos embriagados, ouvindo o rádio anunciar qualquer notícia sem importância para suas vidas. Ele pediu mais uma dose.

A outra dose chegou e por um momento imaginou se seria capaz de renunciar a ela. Não era! Olhava para o fundo do copo e se perguntava como havia parado ali. Era tão humilhante. Tomou de um só gole e bateu forte com o copo na mesa, sentindo-se um fraco, um perdedor. E um fraco e perdedor como ele não merecia a mulher que tinha conquistado havia tantos anos atrás. Desde que deixara de ser o esportista, o bem sucedido, namorado perfeito nunca mais se sentira homem suficiente para ela. E isso os afastou. E afastando-se dela, o mundo para ele já era. E foi assim que entrou nessa vida de outras mulheres e bebidas. As mulheres eram para lhe reafirmar a masculinidade então perdida. A bebida, para esquecer das traições e fragilidades. Nesse ínterim, passara a se irritar com a mulher que amava. Não por detestá-la, como ela provavelmente imaginava, mas por não querer dar o braço a torcer, ou para não se mostrar fraco diante dela, ou... na verdade, nem ao menos sabia.

E tudo foi seguindo assim, como uma roda gigante que insiste em rodar, sem lhes dar oportunidade de descer, ou recomeçar.

A chuva cessou. Ele olhou para fora, questionando-se, indagando-se, torturando-se. Não sabia que em sua casa, também ela se questionava, e se torturava.

Tivessem um dos dois a coragem... Tivesse ele humildade para reconhecer... e voltar atrás. Pois, não sabiam, mas ainda era possível retornar à inocência dos primeiros beijos, dos primeiros olhares.

Quando chegou em casa, naquela noite, encontrou-a tomando leite quente na cozinha. Parou e quis falar-lhe alguma coisa, mas a embriaguez e o estado deplorável em que estava lhe impediram. Apenas olhou para ela, ainda reconhecendo em algum lugar daquele rosto a jovem por quem se apaixonara. Subiu sem dizer palavras. Entrou no banheiro e chorou silenciosamente.

Ela o amou e odiou secretamente pela milésima vez. E pela milésima vez foi dormir com aquela dor esmagadora.

Quando ele saiu do banheiro, deitou-se junto dela e abraçou-a, inseguro. Ela segurou sua mão firmemente e afirmou baixinho: "Vai ficar tudo bem".

Mas, em seu coração, essa ainda era uma pergunta que se fazia. Vai ficar tudo bem?

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Sobre 18 segundos antes do nascer do sol (II)

18

Descendo a pista que levava ao outro lado do lago atravessando a ponte, um carro vem a toda velocidade. Eduardo, o motorista, abre a janela, pensando em gritar.

Ao seu lado, Júlia ri descontroladamente. Estão bêbados, chegando de uma boite onde a noite foi regada a bebida e muita dança.

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Eduardo tenta apertar o botão para descer o vidro, mas erra o alvo.

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Júlia derrama cerveja no banco e se assusta.

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- Porra! - diz Eduardo, ainda tentando...

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encontrar o botão.

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Encontra-o, e enquanto a janela desce vê que já estão no meio da ponte, a uma velocidade absurda, passando por um grupo de amigos que estão a pé.

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- Olha pra frente, Edu - diz a garota, meio desesperada, meio rindo.

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Eduardo pisa no acelerador...

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e solta as mãos do volante.

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O carro voa sobre a pista deserta, derivando levemente para o lado esquerdo.

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Eles sentem a adrenalina lhes roubar a alma. É excitante!

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Júlia olha excitada para Eduardo. O rapaz se aproxima para beijá-la...

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... o celular de Júlia toca.

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A garota procura o aparelho, enquanto Eduardo retorna ao volante, insatisfeito.

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- Onde está essa droga de celular?

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- Que é, Julia? Aí embaixo do banco.

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Eduardo abaixa-se para pegar o apar...

- Edu!!!!!!!!

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O carro encosta no meio fio e subitamente levanta-se a toda a velocidade, batendo no parapeito e girando...

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Eduardo olha assustado pelo parabrisa, e, com o primeiro raio de sol, vê sua vida passar em um segundo e esvair-se num piscar de olhos.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Sobre 18 segundos antes do nascer do sol

18

Pararam no meio da ponte. Andressa, Leo, Pedro, Renato, Vitória e Liana. Voltavam de seu baile de formatura e naqueles breves dezoito segundos entregaram-se à beleza do céu.

Andressa, a Dessinha, andava descalça, na ponta dos pés, carregando seu sapato apertado nas mãos. O vestido roxo de rendas era curto, deixando as pernas à mostra e à merce do frio da madrugada. O frio, que seria logo substituído por um calor incontido.

Leo estava com a gravata solta e paletó no ombro. Era um homem alto, sem barba e, agora, de cabelos loiros desgrenhados. Seus olhos azuis sumiam na escuridão, que também escondia sua tristeza. Sim, pois a euforia da festa não amenizara a saudade de seu recém-falecido pai.

Pedro, ainda arrumado, apesar das horas de dança e bebida, caminhava a passos curtos, atrás de todos, pensativo e ansioso. Por toda a noite observara Andressa, criando coragem para falar-lhe tudo o que sentia.

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Os amigos encostaram-se no parapeito da ponte. Entreolharam-se brevemente...

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... e sorriram. Um sorriso gostoso, mais sincero em alguns do que em outros. Estavam cansados fisicamente, mas a alma ardia em euforia e a saudade começava a despontar. Queriam aproveitar os últimos momentos da vida que deixavam para trás. Amigos inseperáveis durante anos de curso. Será que a vida lhes afastaria, proporcionando novas amizades, mas enterrando no tempo tantas experiências precisosas? Esperavam que não. O sorriso que mostravam era de alegria, mas transparecia também a gratidão.

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Renato, baixo e levemente calvo, com gravata azul combinando com o vestido de Vitória deu as mãos para a namorada. Vitória era alta, constratando com a altura de Renato, cabelos longos, que hoje estavam encaracolados. Namorados a dois anos, olhavam juntos para um futuro que lhes reservava muitas surpresas.

Liana era a mais bela. Vestido longo decotado, cabelos lisos até a metade das costas, transpirava paz e mansidão. Olhou os amigos juntos e desejou, naquele breve segundo, encontrar também um amor tão puro assim, como o de Vitória e Renato.

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Pedro pegou a flor que trazia consigo e jogou-a ao rio. Andressa compreendeu imediatamente o gesto...

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e o imitou. Olharam-se e sorriram. Leo, que estava entre os dois, deixava escorrer uma lágrima, saudosa lágrima.

Pedro esqueceu-se por um segundo da garota que amava e aproximou-se de Léo.

Um carro passou veloz por eles, sobressaltando-os.

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- Força, amigo! - disse Pedro para Léo. Estaremos sempre aqui com você.

Léo tentou falar, mas não lhe saíam palavras.

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Recostou a cabeça no ombro do amigo, enquanto Renato, Vitória e Liana juntavam-se para abraçá-los. Andressa apenas observava, pensando em como amava a cada um daqueles intrometidos, que invadiram sua vida sem pedir licença.

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Andressa juntou-se ao amontoado.

Abraçavam-se. Silenciosos.

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- UHUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUL - gritou Leo. Hoje é dia de festa, cambada! Comemoremos!!!

Desvencilhou-se do abraço, subiu na primeira barra que formava o parapeito, pegou a flor que trazia e...

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jogou-a no lago, como fizeram Andressa e Pedro. Todos o observavam.

Leo respirou fundo...


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e disse: - Ao nosso futuro! Que nossas vidas sigam percursos a futuros grandiosos, como o rio carrega tudo ao mar.

Renato e Vitória abraçaram Liana.

Pedro aproximou-se de Andressa...

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... e passou o braço por seus ombros.

Renato e Vitória foram até o parapeito e jogaram juntos uma só flor desejando silenciosos que seus futuros estivessem repletos de amizades e amores verdadeiros.

Leo cerrou os olhos e sorriu. Dessa sentiu o calor vindo de Pedro.

Liana segurava sua flor, pensativa.

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Desejou que o tempo carregasse os tormentos e aproximasse os amigos. Lançou a flor ao lago.

Pedro mordia-se de ansiedade. Quisera dizer tanta coisa a Dessa, mas as palavras faltavam.

Dessa esperava pacientemente. Para tudo havia um tempo certo.

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Liana soltou um grito de alegria, estendendo os braços para o alto. Leo acompanhou-a.

Vitória acariciou o rosto de Renato.

Pedro e Dessa trocaram um último olhar...

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... e sem palavras, beijaram-se.

Os amigos, surpresos, aplaudiram...

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... enquanto o primeiro raio de sol dispontava, alaranjando o céu no horizonte, prenunciando a aurora de um novo tempo para suas vidas.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Sobre uma trilha

A vida é como uma trilha que encerra dois segredos.

Você começa a caminhada. Vislumbra a natureza rica, exuberante, dando seus sinais de vida em toda parte. Morros altos, cobertos por uma vegetação verde que dá gosto aos olhos. A paz que a mata transmite é pura. Ao chegar à beira do rio, você decide atravessá-lo. As águas são límpidas e correm lentamente, produzindo um ruído que acalma. Você tira o tênis e pisa fundo, sentindo o gelo da água tomar-lhe o corpo. É refrescante.

Atravessando o rio, você se depara com uma nova paisagem. A mata fechada se estende ao longo de uma trilha repleta de subidas e descidas que cansam, mas que valem a pena ser percorridas. A caminhada continua, a sede bate, mas deve-se esperar encontrar o rio novamente. Já acostumado com a vista e a natureza que lhe acompanha, você continua caminhando, cabeça baixa, apenas prestando atenção onde pisa.

Alguns kilômetros a mais e o corpo começa a cansar. As pernas doem e as subidas passam a ser cada vez mais cansativas. Você continua caminhando, pois este é o primeiro segredo para chegar: continue caminhando. E caminhando, depara-se com um recanto escondido, um poço onde se pode mergulhar e beber de uma água fria e pura, puríssima. Você deixa a roupa e a mochila de lado e pula. Nada e se diverte ali, onde o contato com a água e o ar o fazem lembrar que estar vivo é uma bênção. Você deseja permanecer ali por muitos e muitos dias, mas tem uma trilha a cumprir. Não se pode acomodar na primeira facilidade. Então, continua caminhando.

Com o espírito renovado, você segue. Segue por muitos mais kilômetros, e atravessa uma paisagem seca, com poucas árvores, em que o sol atingi-lhe a face sem misericórdia. A pele arde e a sede fere. O corpo começa a pedir descanso, mas você sabe que não pode parar, e não valerá a pena voltar. Você continua caminhando, continua caminhando.

As pernas doem e cada subida é um martírio. Nas descidas, você segura firme o corpo, que quer soltar-se e se deixar levar pela gravidade. A sede é intensa, o sol é forte, e em volta não se vê sinal nenhum de qualquer paisagem em que se possa descansar. Você está no meio de morros, todos altos. A trilha segue, e a cada curva vê-se a mesma paisagem. Já se vão duas horas de caminhada, e nada muda. O corpo cansa, a vontade desfalece, mas você continua caminhando. Pois este é o segredo: continuar caminhando.

Você segue a trilha que o leva entre dois morros. Novamente, entra em uma mata fechada. Ao longe, ouve-se o ruído de água. Ganha-se uma nova força, uma esperança surge. Haverá água logo a frente, e você poderá saciar a sede, descansar. Segue. Anda. Sobe e desce numa trilha sem fim. Mais dez minutos, vinte, trinta.

E de repente, lá do alto, você vê. A cento e vinte metros do solo, a água cai ininterruptamente. O paredão forma como que uma escada íngreme por onde a água desce, produzindo o som tão peculiar da cachoeira. A água cai e forma uma imensa piscina, onde se pode nadar e aproveitar o resto do dia. Lá do alto, vê-se o sol batendo no topo do morro, clareando o verde que se instala pelas beiradas da queda. Tudo é belo, tudo é paz. Você se senta na pedra, molha o pé e contempla a maravilha da natureza. Valeu a pena a caminhada. Olha para o lado e vê... outros tantos que caminharam com você. Sorri para eles, e descobre o segundo segredo: não se pode chegar lá sozinho.


ps: a água tava MUITO GELADA!!!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Sobre ser parte...

Respirou fundo, sentindo o ar gelado e úmido entrar em seus pulmões. Percebeu a vida correndo em suas veias. Sempre soube que estava vivo, mas agora sentia isso de uma forma especial. Saber que está vivo não basta, é preciso pensar nisso, é preciso reparar, sentir, lembrar-se.

Enquanto a água fria escorria sobre seu corpo, vindo de muitos metros acima, descendo em uma cachoeira altiva, imponente, seu pensamento viajava longe da natureza que ali sobrava exuberante. Seu pensamento vagava perdido por kilômetros de terra batida, estradas, rodovias, prédios e casas. Lembrou-se do rosto dela, e de como a queria ali. Imaginou-a só, pensando nele. Não se entristeceu, pois o mundo lhe fazia companhia e cada gota límpida que lhe tocava as costas lembrava-o da incrível capacidade de viver. Sorria um sorriso gostoso, cheio de água e sol.

Ah, o sol. Não aparecia tanto quanto devia, não esquentava como poderia, mas estava ali. E isso bastava. De quando em vez, seus raios se libertavam das nuvens e atingiam com força folhas, galhos, e corredeiras. O mundo se coloria com sua presença e tudo ficava mais bonito.

Ele saiu debaixo da cachoeira e se pôs a nadar. A correnteza facilitava-lhe o esforço e cada centímetro de seu corpo agradecia a Deus por estar ali. Saiu da água, sentou sobre uma pedra e deixou o vento secar seu corpo. Contemplou todo o vale em que estava. Fechou os olhos e deixou a mente ser carregada com o ruído da água que caía e corria, como um barco que se deixa levar pela correnteza. Seu espírito estava livre, sua alma, contente.

Largou-se ali. Entregou-se ao nada. Soltou-se no tempo.

O tempo...

que passou sem ser percebido, e o reencontrou ali mesmo, na mesma posição, dias depois. Apenas mais um ser. Uma outra parte da natureza.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

Sobre celebrar a vida!

Vamos celebrar a vida!!!

Dar o beijo que precisa ser dado.
Apertar num abraço forte o amigo.
Dizer as palavras que calaram há muito, mas que ainda moram no coração.

Querer bem a todos que passam ao lado.
Perdoar quem deve ser perdoado.
E pedir perdão.

Recordar com carinho dos que se foram.
Fazer valer sua memória e história.
Guardar no coração os bons momentos.

Lembrar que há muito que viver.
E que a vida não acontece sozinha.
É preciso querer. É preciso mover.

Sorrir.
Cantar.
Dançar.

Não deixar passar em branco o dom da vida.
Aproveitar cada chance de ser e fazer feliz.
Cuidar... de si, do outro, de todos.

Fazer valer nossa passagem, que é breve.
Para sermos lembrados...
... como aqueles que amaram. E só!

SE LEMBRAR DE CELEBRAR MUITO MAIS!

Vamos celebrar a vida!!!

terça-feira, 6 de julho de 2010

Sobre o começo...

Vou contar-lhes uma história.

Em um lugar muito afastado deste lugar em que vivemos; em um lugar que não pode ser alcançado com veículos - por mais rápidos que eles sejam -, com os pés, ou de qualquer outra forma física; em um lugar que só se pode chegar com as ideias, as fantasias e os sonhos; neste lugar, cheio de mistérios e interrogações, reside um pequeno menino, um menino bem pequeno, chamado Clauss.

Clauss vive ali. E, por enquanto, isso é tudo que precisam saber sobre ele.

Ali, onde Clauss vive, é um país maravilhoso, repleto de livros de histórias e histórias e histórias. Os habitantes desse país, Ali, nada fazem se não ler e ler e ler. Eles lêem o tempo todo, e durante todo o tempo estão lendo. Os livros simplesmente existem e ninguém sabe quem os escreveu, ou quem os pôs em Ali. E tão pouco isso importa, pois são tantos e tantos e tantos os livros e as histórias, que jamais faltarão histórias para serem lidas. E por mais que um dia algum habitante tão sedento por livros e histórias venha a ler todos e todos e todos os livros, ele poderá muito bem recomeçar, pois serão tantas as histórias e tão grande será o tempo transcorrido para ler todas elas, que quando recomeçar, será como na primeira vez.

Vocês podem pensar que é muito estranho um país ser cheio de livros, e os habitantes desse país não fazerem nada e nada e nada além de ler. Sim, é estranho, mas lembrem-se que esse país é bem diferente de todos os outros que vocês já visitaram, pois só se chega até Ali pelas ideias e pelos sonhos.

Em Ali não há regras como comer, beber e conversar. Apenas ler. Por isso, Ali é cheio de mesas e cadeiras, e puffs e redes armadas em pilastras. E nas paredes há ventiladores para os dias quentes, e em algumas salas, lareiras para os dias frios, e cobertores também. Vocês podem estar se perguntando quem sai para cortar a lenha, ou quem lava os cobertores. Pois, a lenha sempre está na lareira, e na lareira sempre há lenha, e o fogo arde sem a consumir. E os cobertores sempre estão limpos, sem que se seja preciso lavá-los. Simples assim, sempre limpos.

Há ainda uma informação muito importante e fantástica para se dizer de Ali, de seus livros e de suas histórias. Quando um habitante de Ali abre um livro e começa a lê-lo, a história que está sendo lida acontece. Sim, acontece como suas vidas estão acontecendo agora, de verdade. Em algum lugar misterioso do Universo, cidades surgem, pessoas respiram e monstros assustam, como disse, de verdade. E a história, na medida em que é lida, se desenrola nesse lugar misterioso do Universo, e o habitante de Ali que lê a história, não pode parar de ler até que a história chegue ao fim, por que assim ele estaria matando a todos. E quando a história chega ao fim... bem, aí não se sabe ao certo o que acontece. E isso é tudo o que posso dizer.

Voltemos, pois, a Clauss...

O pequeno Clauss tem apenas 50 centímetro de altura. É bem pequeno mesmo, mas isso não importa no país Ali, pois há tanto pessoas muito grandes, quanto pessoas muito pequenas, e todas elas se respeitam e se ajudam. O pequeno Clauss de 50 centímetros tem orelhas pontudas, dedos enrugados. Sua pele é da cor... bem, não importa a cor de sua pele, tampouco importa a sua aparência. Quer saber mesmo como é Clauss? Clauss é imaginativo, amigo e verdadeiro. Nas poucas vezes que conversa com alguém - no intervalo de leitura entre um livro e outro - procura realmente compreender a pessoa. Ele não faz muitas perguntas, apenas as necessárias para que a pessoa se sinta acolhida para falar. Ele ouve, e isso o faz ser tão verdadeiro. Talvez um dia eu e você aprendamos o que isso quer dizer.

A imaginação de Clauss é sua principal característica. É o que permite a ele ser tão especial em seu país. Quando a imaginação de um habitante de Ali é muito viva, os livros que ele lê são mais reais, acontecem de verdade verdadeira, com uma intensidade... intensa. Quando a imaginação é curta, fraca, a história acontece sem emoção, e no lugar misterioso do Universo em que ela acontece, é como se a realidade estivesse piscando todo o tempo, como uma chama que quer apagar.

Com a imaginação tão viva de Clauss, por várias vezes ele já pôde ouvir a história que estava sendo lida. Já pôde sentir os cheiros, quando na história alguém sentia cheiro, os gostos, quando na história alguém comia, ou o vento sobre seus ralos cabelos, quando na história o vento soprava. E quando Clauss contava isso nas tertúlias noturnas que participava, todos se admiravam e sentiam vontade de ser como ele.

...

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Sobre discplina e paixão

A Eslováquia esteve melhor a maior parte do jogo. Administrou bem a bola, finalizou mais e manteve uma postura regular em relação ao adversário. Mereceu a vitória.

A Itália, por outro lado, jogou apática, sem vontade. Não brigou quando o juiz não validou um "quase-gol" duvidoso. Entraram derrotados, com a chama quase apagando... quase.

O que tornou esse jogo de Copa do Mundo o mais emocionante do Mundial de 2010 até agora foi a rivalidade universal e atemporal entre Disciplina e PAIXÃO. Rivalidade sem fim, que só sossega quando as duas coexistem e andam de mãos dadas. Explico...

A Disciplina eslovaca quase levou a seleção à desejável excelência. Excelência que somente é alcançada com a própria disciplina em questão. Esforço contínuo, diário, rotina chata, porém necessária. Disciplina que exige uma imensa liberdade interior. Já cantou o saudoso Renato Russo: Disciplina é liberdade. Liberdade de não se deixar vencer pelo sentimento momentâneo, a preguiça, ou qualquer outro vento que sopre. Disciplina que exige o trabalho, apesar de todo o cansaço.

Vê-se o sucesso de tantos empreendimentos levados a cabo com a tal Disciplina: vestibular, concurso, uma graduação bem feita, um projeto de engenharia, uma empresa...

O problema da Disciplina é a necessidade da constância. Palavra difícil de ser vivida, mas que está intrinsicamente ligada À Disciplina. Então faltou constância à Eslováquia? Talvez, mas não só.

Dizia eu no começo que a Itália entrou em campo apática, com a chama quase apagando... quase. Pois, "todo sopro que apaga uma chama, reacende o que for pra ficar". Quem diria que ao levar o segundo gol, ali, onde havia apenas desânimo e desleixo, surgiu uma brasa ardente. O segundo gol da Eslováquia foi apenas o combustível para o fogo que queria arder. Avante Azzura!!! A segunda maior potência do futebol se reergueu, lutou, desbravou a zaga do adversário, alcançou o gol. Ainda havia tempo... a chama ainda queimava e até os 51 minutos do segundo tempo a Azzurra permanecia em pé, lutando bravamente.

Isso é PAIXÃO! Se a Disciplina é o esforço consciente e contínuo que permite a conquista passo-a-passo de um objetivo, a PAIXÃO é aquele fogo que impele, arrasta ou empurra, joga pra cima e faz o homem realizar grandes coisas em pouco tempo, movido pela garra, raça e determinação. A PAIXÃO é a vontade e o sentimento momentâneos falando alto, gritando em seu ouvido e desejando tomar posse do que é seu de direito. A PAIXÃO é capaz de escalar montanhas, levantar taças, erguer monumentos, escrever lindas histórias. A PAIXÃO é capaz de matar e morrer pelo objeto de desejo. A PAIXÃO move até o mais apático, como moveu a Azzurra.

O Brasil é um país apaixonado. O povo brasileiro vive de PAIXÃO: pelo futebol, pelo CALABOCAGALVÃO ou TADEUSCHMIDT; mas é um povo sem disciplina. E sem disciplina, nem mesmo a tão apaixonada Itália é capaz de vencer. Estou falando do Brasil país, não da seleção.

Por quê é preciso disciplina? Por quê a PAIXÃO sempre esbarra em muros que não consegue escalar. O muro da rotina, da demora, do cansaço. Dessa vez (com a Itália), esbarrou num muro imenso de centímetros que separaram o pé de Pepe da Jabulani. A PAIXÃO deu vida, mas a disciplina prevaleceu.

E se o gol viesse? E se, aos 51 minutos do segundo tempo, Pepe cravasse a Jabulani na rede? A PAIXÃO venceria a disciplina? Não! A PAIXÃO italiana venceria a falta de PAIXÃO por parte dos Eslovácos.

Ora, o homem não chegou à Lua apenas por Disciplina. Foi preciso PAIXÃO pelo desconhecido para levar o sonho adiante. O sucesso de um empreendimento grandioso raramente é fruto apenas do esforço contínuo, pois precisa de comprometimento com a obra, fidelidade ao sonho: PAIXÃO.

Faltou amor à vitória. Uma Eslováquia que dominou a partida por 75 minutos deixou-se apagar ante o fogo devastador da Itália. A Disciplina vacilou. Bastou, mas por pouco não morreu na praia. Já a PAIXÃO... fez gritar intensamente. E aumentou o sofrimento, pois um "quase" é sempre mais doído.

O que fazer, então? Como viver esse infindável engalfinhamento entre a tão acalorada PAIXÃO e a tão ordenada Disciplina. Ora, parafraseando Che: Há que se ter Discplina, mas sem perder a PAIXÃO...

JAMAIS!

Sobre a alma e o poeta

O verso livra, o poeta.
A alma, encarcera.
Para que exista ser,
não age, espera.

Enquanto irrompe,
num ar de insone,
nasce a poesia,
e o sono some.

Ele, seus desejos deixa,
seu ser ajeita,
por horas escreve,
ela se queixa.

O verso livra,
a alma grita.
Cresce a tensão,
Cresce a intriga,

Encarcerada
desesperada,
- Não há encanto,
não há nada.

Agoniado,
atormentado,
Dói-lhe os ouvidos,
sofre calado.

E brigando permanece,
Até que o surto desvanece.

A alma e o poeta.
Ela cala,
ele prevalece.

domingo, 20 de junho de 2010

Sobre um minuto da sua atenção

Oi, seu môço. Favor me dê 20 centavos de sua atenção. É, pois, se tempo é dinheiro, seu minuto de trabalho deve valer esse montão.

Sim? Grato.

É que é o seguinte: eu sou homem direito, e por trás desse jeito, meio tosco meio amargo, sou estudado. Sou sim, sinhô. O "sinhô" não é interior, é arte. Pura forma de abrir o encarte.

Sem mais delongas, este homem que vos fala, outrora foi escravo. Da burocracia, da necessidade, das inverdades vendidas por essa sociedade. Escravo sem corrente, sem chibata ou porrete. Só escravo mesmo. Escravo 'livre', como esse tanto que por aí se vende.


Enfim, escravo eu fui. Mas troquei, troquei mesmo e não me arrependo. Troquei o estômago pelo coração. E hoje sigo essa canção que hoje bate em meu peito.

Mas nem tudo é perfeito.

Não, nem tudo é perfeito. Se antes o coração doía, hoje dói-me por inteiro. Dói o braço, a perna e a barriga. Esta dói é de falta de comida. Triste vida!

É que o contar histórias não vende nada. Os homens que por aqui passam querem utilidade. Não se importam com canções, nem sonhos. Querem expulsar o que não é produtividade. Não os culpo. Tampouco apóio. Acho que é tudo um grande conluio pra enriquecer os que não se esforçam.

E aí, aqui tô eu. De história em história. Me resta dos dias idos a memória. Memória do dia que dormia num colchão, com cobertor. De manhã, comida. Em casa. Mas de noite, bem na calada, meu coração suspirava. O amanhã era dia de vender minha verdade, pra pagar a comida e no fim de semana, a balada.

E aí troquei o estômago pelo coração. E hoje sou feliz. Feliz, sim! Pois desde o dia que mudei de vida, só fiz o que quis. Não é carpe diem, é convicção. Não se engane, não. Sou mais consciente que essa gente que fala e fala e fala... e fala...

Mas não dá pra viver de bala. Eu quero viver, para os meus sonhos poder contar. E pra isso, comida preciso comprar.

Já deu seu minuto, seu dotô.

10 pila? Obrigado. Tome aqui 5 conto... é de troco. E dê essa nota pro pai de família, que não pode seguir seu sonho, por que tem que alimentar a mulher e a filha.

5 conto, que lhe dará liberdade de gastar bem uns 25 minutos, tempo precisoso, como quiser, simples assim... livre.

Sobre patriotismo!

E todos festejam, todos gritam! É GOL! É um, é dois, é três! O Brasil vibra. O Brasil canta. O Brasil chora! Nesta noite, milhões de brasileiros dormem mais felizes, corações palpitando, corações ardendo!

E nossas crianças dormem nas ruas... e fumam crack. Não faz mal, hoje tudo bem. Faz frio, muito frio, mas ao menos seus corações estão em chamas.

E eu sou brasileiro. Rumo ao HEXA!

?????????????

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sobre uma montanha

De repente, eu me deparo com uma grande montanha. Sigo caminhando e me aproximo. Temo. Ela é tão alta. Imensa. Olho para os lados, onde o horizonte se esconde. Não há outra saída, é preciso escalar.

Descanso ao pé da montanha. Tomo fôlego, alimento-me. É preciso estar inteiro. Uma vez lá em cima, não é prudente que se volte. Uma vez lá em cima, não se quer voltar. Descansado, olho para o alto. Não se enxerga o topo daqui, mas sei que em algum lugar sobre as nuvens, lá ele se encontra.

Subo. Passo a passo, preparando-me para qualquer imprevisto, observando cada detalhe da paisagem. O começo é fácil. A subida é pouco íngreme, o clima é quente e a natureza me acompanha com todo seu esplendor, suas cores vivas e sua respiração pulsante que me faz feliz. Converso com as coisas. Digo 'oi' para as árvores e conheço algumas lagartas. Pergunto-me quando elas virarão belas borboletas. Elas não me respondem, de tímidas que são.

Ao fim do primeiro dia, estou feliz pelo progresso. Olho para baixo e vejo o quanto caminhei. Sigo o soar de um regaço. O ar úmido é refresco para o corpo cansado, e a água fria mata a sede e restaura a alma. Acampo. Olho para as estrelas. Elas me guiarão na madrugada. Em poucos segundos, durmo.

Acordo disposto. O sol ainda não disponta. Quero aproveitar a lua e as estrelas para caminhar e pensar. Nesse momento, caminho olhando mais para o céu do que para o chão. Arrisco-me a tropeçar em uma pedra, mas as constelações que daqui se enxergam, não se enxergam da cidade. A experiência é única. Vale a pena o risco.

O ar que sai da boca cria uma espessa fumaça por causa do frio. Como criança que acaba de descobrir o fenômeno, vou soprando e repirando, divertindo-me com a experiência de estar vivo e subindo.

Paro. A pressa em atravessar a montanha não pode me impedir de aproveitar as belezas do caminhar. Sento e espero o nascer do sol. A alvorada, quando estamos rodeados de natureza, é tão mais bela e completa. Vejo o astro-rei subir devagar, majestoso, e acordar cada pedaço de relva verde e cada inseto que dormia tranquilo em sua toca. Sinto o calor, ainda tímido, começar a aquecer meu corpo. Estou vivo!

Continuo a caminhada. Mais um dia de subidas. Outra noite e outro dia.

Os dias passam rápido. É tudo tão novo, a experiência empolgante.

O alimento começa a faltar. É preciso procurar frutos, insetos ou presas. Não me importo. Só tenho a crescer com a dificuldade. O ar é cada vez mais frio. As noites são mais longas, pois dormir tornou-se difícil. Acordo com menos forças e só consigo caminhar quando o sol já está quente.

O cume ainda está distante. Subo menos a cada dia, pelo cansaço, pelas dores e pela dificuldade em respirar, fazendo com que, paradoxalmente, o topo fique cada vez mais longe. Penso que já é uma vitória chegar ali, mas de que me adiantará se não chegar ao fim? Se não vislumbrar a bela paisagem do alto, terá valido tanto esforço? Não posso desistir.

Subo. Subo. O frio é intenso. O ar que entra em meus pulmões gela a alma, arde, machuca. A fome bate, mas o alimento deve ser racionado.

Tremo.
Canso.
Enfraqueço.
Caio.

Passo um dia em torpor.

Encontro uma caverna. Busco palha seca e faço uma fogueira. Encontro alívio no fogo que arde e ilumina. Como é belo, como é forte. Quero ser como ele, como o fogo. Quero ser forte e quente. Quero... Mas o fogo só nasce do atrito ou da combustão. É preciso ter o que queimar. Quero queimar minha vida, meus sentimentos. Quero queimar meu ser.

Fortalecido, exploro a caverna com uma tocha. É profunda, escura. Há água. Abasteço-me. Os caminhos são tortuosos, alguns estreitos. Descubro-me ali dentro. Minha sombra cresce em alguns momentos.

Pego uma trilha que sobe. Ela é escura como a noite. Será um atalho? Será que sairei em outra caverna, mais acima? Arrisco-me. Às vezes é preciso enfrentar a escuridão, caminhar apertado e enfrentar o medo para poder vislumbrar a luz. Além disso, é preciso conhecer a montanha por completo, seu exterior, e seu interior. Haverá também belezas lá dentro.

Subo a trilha. Por muitas vezes, deparo-me com dois ou mais caminhos. Escolho.

Sigo prevenido. Tochas, madeiras, água. Pesam-me, e o corpo já é fraco, mas sigo firme. Já não sei se é dia ou se é noite. O espírito já se consome em si de tanto tempo na escuridão. O espírito entristecesse e percebo o quanto a luz do sol faz bem pra alma. Isso, ao invés de desanimar-me, faz-me caminhar mais. Quero sobreviver. Quero rever o sol. Sei que ele está lá.

Caminho cansado. O interior da montanha é quente. Desnudo-me e sigo.

A luz. Sim, é o sol. Alegro-me. A alma rejubila-se. Canto pro sol. E saio do ventre da montanha, nu. Solto a mochila e enfrento o frio e o ar puro, ainda que rarefeito. Choro. Renasço. Vejo o sol e a natureza. Contemplo tudo o que há embaixo. Era um atalho, de fato. Subi muito. Valeu encarar a escuridão. Valeu, ainda que tenha sido só pela alegria de reencontrar o sol. Como num novo primeiro encontro.

Olho para o alto. A subida agora é íngreme. Muito. Sorrio. Escalo. Retiro forças do reencontro. Como o sol me fez bem! Quem disse que só de pão e água retira-se forças físicas?

Escalo.

A noite cai. O frio irrompe. Choro. Os sentimentos já se confundem. Os dedos doem. Não encontro lugar para repouso. Apenas debruço-me sobre o paredão, numa posição segura. Olho para baixo, desespero-me. Olho para cima. Fito uma linda estrela, resplandecendo luminosa, destacando-se sobre as demais. Ela me chama. E eu faço o firme propósito de só parar quando alcançá-la.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Sobre um dia consigo

O despertador toca cedo. É tão cedo, e o cansaço tamanho! Como não há outra escolha, você pega o celular, desliga-o e calmamente senta-se sobre a cama, buscando com pés ainda desobedientes o chinelo a ser calçado. Você se levanta e se dirige ao banheiro. Olha para o espelho, abre a torneira, molha o rosto com a fria água da manhã e enxuga-se bravamente para se manter acordado.

É tão injusto ter que se levantar depois de uma noite tão agitada, tão densa de sentimentos e reflexões. Mas você sabe que o mundo não pára, ele não espera ninguém se acertar para continuar. "It always goes on, and on, and on, and on...", você pensa. E pensando assim, sai de casa, com trilha sonora.

De certa forma, sair ao sol ainda frio e sentir a gélida brisa da manhã lhe anima. Um clima de paz acalma o coração e respirar profundamente torna-se um grande remédio à amargura que lhe acompanha em cada passo. 'Até que ponto não sou mais o mesmo?'. É essa a reflexão que lhe martela os pensamentos. É com ela que você foi dormir na noite passada após uma longa conversa que lhe testava a capacidade de responder da mesma forma que antigamente a situações semelhantes às ocorridas no passado. E você perdeu. Mudara o pensamento, mudara a forma de agir, irritou-se facilmente com bobeiras entre tantas outras coisas... e o peso da certeza que se materializara então impediu-lhe de ter uma boa noite de sono. E a certeza era essa - simples, mas de certa forma fatal: você cresceu. E isso pesou.

Para se distrair, liga o som do carro e escolhe um som que acalme os pensamentos. O pensamento voa longe, a mente se vê livre e você sem perceber batuca levemente ao volante. Chegando ao trabalho, um bom-dia para alguns, um rápido olhar distraído para outros. A manhã se arrasta vendo-se cheia de pequenos compromissos que lhe ocupam o tempo e a cabeça. Você se esquiva de algumas conversas mais animadas, pois o humor ainda não é dos melhores e procura desculpas para dar uma volta ao ar livre.

Você almoça com uns amigos, sorri, conversa e brinca. Não é de todo aquele rapaz de anos atrás, mas ainda é capaz de sentir o valor de pequenos momentos de comunhão de idéias e a importância de uma boa conversa jogada fora.

A tarde voa como se você não estivesse protagonizando a própria peça. Mil afazeres, pouco tempo. Seu espírito quer voar, mas as regras do mundo adulto lhe impedem de desfrutar um segundo de paz. Você se sente aprisionado à rotina insossa que perpassa seus dias. Dias valiosos, dias cheios de possibilidades. E a impressão que lhe fica é que o tempo de arriscar, dançar, jogar, querer, buscar... esse tempo passou. Resta a você resumir os dias à mesmice e, vivendo um dia de cada vez, esperar que os anos passem, as coisas aconteçam e, quem sabe, você deixe o mundo com um sentimento bom.

E você chega em casa. Doze horas após ter acordado, você pode livremente escolher o que fazer. Vê-se ante algumas possibilidades e está ciente de que 'cada escolha é uma renúncia'. São poucos os momentos livres e saber acolhê-los e aproveitá-los é coisa de artista, um artista que conhece a Arte da Vida. "Infelizmente", você pensa, "não nos ensinaram essa matéria na escola".

E então você decide. Liga para um amigo e marca uma cerveja no bar. Muitos são chamados, poucos aparecem. Você não os culpa. São os afazeres da vida.

E vocês bebem, e falam e riem. Petiscam e relembram histórias que marcaram cada coração. Projetam o futuro e descobrem em cada um a mesma ânsia de viver uma vida vivida. E voltam para casa aliviados. Respirar o ar limpo de uma amizade é melhor remédio para qualquer amargura ou desgosto.

Já em casa, você entra no banho e deixa a cabeça encontrar o seu lugar. Não se força a pensar ou refletir, já é hora de a mente também ser livre de si mesma. Com o corpo limpo, os dentes brancos e a cama arrumada - tudo preparado para o sono - resta a você olhar-se no espelho novamente.

O rosto amadurecido é sinal claro do tempo e das mudanças que ele produz. Você não sente vontade de voltar atrás e reviver o que passou. Você não sente vontade de ser daqui pra frente o máximo, o melhor. Você apenas se olha no espelho e reconhece, entre tantos outros traços antes inexistentes, aquela criança, aquele adolescente, aquele jovem que construíram o seu presente. Você os reconhece no espelho, e os cumprimenta. Agradece e ensina - ainda que a lição venha demasiado tarde. Mas também com eles aprende. E encontra dentro de si - vivos, respirando, amando - todos aqueles que você já foi, todos aqueles que te fizeram ser você. E o presente ganha o significado novo de uma construção. Uma construção feita tijolo por tijolo, escolha por escolha. E se hoje o espírito se sente preso, é por que se quis criar para ele um belo lar. E não é preciso destruir esse lar, mas talvez reformá-lo.

E você sabe que o homem no espelho tem a capacidade de escolher. E você delega a ele a função de se fazer feliz.