segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Sobre despreocupar-se

Mais uma vez se via sem iniciativa diante de tantas coisas que aconteciam em sua vida. O propósito de ano novo de ser mais seguro de si, confiante e proativo já ia se desfazendo logo nas primeiras semanas do ano. A consciência de que tão pouco dependia dele impedia-lhe de agir, fazendo com que permanecesse parado, quieto, sem movimentos e perdido entre um ato e outro do teatro em que viraram seus dias. Um teatro em que o ator principal parecia ser... o acaso talvez.

Mas, pensava consigo, que podia fazer se pouco dependia dele? E isso não era fuga, tampouco era desistência. Era fato consumado. Doloroso, mas fato. Dessa forma, cansado de lutar contra forças que não podia mover, decidiu que gastaria suas energias em algo em que pudesse fazer diferença real e substancial. Entregou-se ao acaso naquilo que não mudaria, desprendeu-se da preocupação de fazer dar certo e relaxou pela primeira vez desde as zero hora do primeiro dia do ano. Percebeu que o peso de fazer novo o que era velho impedia-lhe de saborear a beleza da mudança e que a mudança não aconteceria se permanecesse pregado de preocupação e culpa.

Ao se permitir não agir e não tentar controlar tudo ao seu redor, potencializou energias naquilo que poderia mudar. E começou assim, primeiro um passo, depois outro, na esperança de ir longe, bem longe e, quem sabe um dia, poder voar.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Sobre ser dia

às vezes me acontece
de eu me acontecer.
passo horas, passo dias,
passos dou, pássaro sou.
se me acordo, a cor dou,
e pinto os meus minutos,
desenho-me onde vou.
escrevo meu destino,
selo minhas cartas,
que vivo para quem serei.
serei pássaro? serei peixe?
só não me importa o que terei.
entardeço-me, ocasiono-me,
acontece-me de me acontecerem.
caio, e não me levanto, mas aproveito.
vejo, caído, estrelas que nascem,
brilham sorrisos, que notícias trazem?
brilham, e é tudo o que fazem.
isso lhes basta, e se bastam.
anoiteço-me, adormeço-me,
pinto meus sonhos,
sonho roteiros,
canto com grilos,
fujo labirintos,
corro e não saio,
saio voando.
meus sonhos mais loucos,
ser louco nos sonhos.
sou louco? só sonho.
louco se não sonho,
louco se não sonho,
louco, louco, louco.
esclareço-me, amanheço-me.
auroro e irradio-me,
respiro sereno,
resgato orvalhos,
rego meus planos,
enxáguo minhas lágrimas,
vivo.
vivo louco
só por isso sou
vivo.
vivo louco
e só por isso sou.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sobre um menino e um capitão

O capitão levantou com a aurora amanhecendo no horizonte. Caminhando pela areia lentamente, espreguiçando-se, apenas meio acordado, contemplou o imenso mar azul pelo qual deveria navegar. Seus olhos lacrimejaram. Seu coração ardia, batendo em disparada. Suas mãos, mãos de ferro e de brandura, dançavam no ar guiando como um maestro as ondas do mar. Rejubilava-se. Em um dia estaria embarcando rumo à última de suas viagens. Esperou pacientemente o sol se erguer majestoso, enquanto, aos poucos, toda a cidade acordava e dava vida às ruas e ruelas. O porto foi enchendo preguiçosamente e os ruídos dos barcos e máquinas se sobrepuseram ao leve e doce som do mar. O marulhar levantava os barcos suavemente enquanto a orla ia se desfazendo à medida que mais barcos e canoas se achegavam ao porto.

Tudo era movimento. Tudo era som. Tudo era pressa. E tudo contrastava com a maravilhosa calmaria do mar, com o doce som das ondas a bater nos rochedos nus, com a harmonia do gigante que ora dormia sereno, ora roncava alto, qual cão de guarda atento aos perigos da rua. O capitão amava o mar, e gostava de imaginá-lo assim, como um gigante adormecido.

As horas passaram despercebidas. A manhã se foi sem que o capitão sequer saísse de seu posto ou falasse uma palavra. Os marinheiros o conheciam suficientemente bem para saber que não deveriam se intrometer naquela solenidade: o capitão olhava o mar, um pouco de cada vez, ouvia-o, sentia-o, deixava-se tomar conta pelos mistérios contidos em toda sua imensidão, pulsava com o mar, era um com o mar; e o mar, em retribuição, lhe lançava afagos e canções, contava-lhe histórias, tocava-lhe o coração e lhe deixava claro, claro como o céu mais limpo de nuvens, que ele, o mar, jamais poderia ser abarcado, jamais. Tudo isso acontecia sem que precisassem se tocar, como num ritual em que o divino e o humano se compartilham, sem que o divino desça ou o humano transcenda. Mas o ritual nada mais é que uma primeira porta de entrada, e dessa solenidade entre capitão e mar sempre nascia o contato íntimo do adentrar-se. Todos já sabiam, então, que o capitão partiria em mais uma viagem.

A tarde caía, o céu azul-laranja escurecia e o porto ia dormindo lentamente. Pôde-se ouvir novamente o som do marulhar, e apenas ele. Gaivotas voavam ao longe alheias ao mundo dos homens. Levantavam vôo alto e desciam em rasantes sobre o mar para se alimentarem. Tocavam leve e brevemente as águas e arremessavam-se novamente ao escuro azul do céu. O capitão acompanhava essa dança e, inevitavelmente, deitava seu olhar sobre o horizonte.

- Sabe, menino – disse, sem desviar o olhar fixo no horizonte, ao garoto que por horas estava sentado no banco, observando-o, fascinado.

O garoto se levantou de um salto, como se tivesse sido acordado de um pesadelo horrível. Estava atento e sem dizer uma palavra demonstrou todo interesse em ouvir as palavras que se seguiriam.

- ... há quem diga – continuou o capitão – que o céu e a terra se encontram na linha do horizonte. O que você acha disso?

- A... acho que... que se a gente se aproxima do horizonte, o céu e a terra só se tocam mais na frente. Sempre é mais na frente, não é?

Os dois se entreolharam. Quieto, o capitão pareceu voltar ao estado inerte daquele dia. Estava refletindo sobre as palavras do pequeno.

- É sempre mais a frente. Você me surpreendeu, sabia?

O silêncio reinou por minutos. Ambos olhavam para o mar, para o horizonte distante que jamais poderia ser alcançado.

- Eu costumava acreditar – começou o capitão, interrompendo o silêncio – que o céu e a terra se encontravam não no horizonte, mas no coração dos homens. Com suas palavras, agora, penso que talvez eles nunca cheguem a se tocar, por que sempre há mais de céu a buscar e mais de terra a se deixar.

- Capitão, será que um dia eu serei um marinheiro tão famoso quanto o senhor? – o garoto perguntou sem respirar, como se segurasse a pergunta há muito tempo.

- Famoso é o mar, pequeno. Nós, marinheiros, apenas o fazemos ser conhecido. O marinheiro que se preocupa com famas e glórias deixa de lado o mais importante dessa profissão: conhecer o mar e conhecer-se a si mesmo ao navegar.

O garoto sorriu largamente. De alguma forma aquelas palavras lhe tocavam o coração e lhe indicavam um caminho excelente a ser seguido, um percurso que valeria a pena ser percorrido.

- Eu quero me conhecer, capitão. E quero conhecer o mar.

- Esse é um belo sonho. Um sonho que vale a pena ser sonhado por que nunca será suficientemente alcançado.

Deixaram-se calar pelo resto do dia até se despedirem silenciosamente. Enquanto o menino voltava para casa equilibrando-se em meio-fios, o capitão se dirigiu a seu barco, sua casa, onde passaria a última noite próximo à terra. A lua, que até então iluminava a orla, escondeu-se por trás das nuvens, escurecendo os sonhos do capitão.

******

No dia seguinte, as nuvens decidiram não mostrar o sol. O vento gelado arriscava-se entre as ruelas e cortava as faces corajosas que saíam de casa cedo. Não eram muitos os corajosos a enfrentar o frio, somente os mais curiosos. Queriam ver o capitão e sua despedida. Era quase como um teatro ou uma dança: o capitão preparava algumas palavras de despedida para a terra, sussurrava palavras inauditas de boas vindas ao mar. Levantava velas, içava âncora, tudo em movimentos belos e serenos e comoventes. Aqueles que assistiam à quase celebração voltavam para casa um pouco mais calmos, um pouco mais íntimos da natureza e seus mistérios, um pouco mais próximos do transcendente que se deixava tocar durante aqueles breves minutos.

Quando os primeiros rostos começaram a aparecer na orla, já encontraram o capitão a meio caminho da celebração. Movia-se de um lado para o outro em silêncio profundo. Seus passos eram leves como se não quisesse acordar quem dormia no andar de baixo, o gigante adormecido. Vez ou outra, detinha-se e lançava olhares amáveis para o horizonte. Não parecia se importar com o mau tempo. Não parou quando alguns poucos pingos de chuvisco ameaçaram derrubar um grande temporal. Apenas parou alguns segundos após um tremendo trovão que assustou a todos. Parou em sinal de respeito às forças da natureza, mas logo continuou com o ritual. Ele era suficientemente próximo do mar para não temê-lo, pensavam todos.

Entre a multidão que se adensava, estava ali um pequeno garoto, nariz escorrendo, pescoço coberto por um grande cachecol que quase o afogava. Depois de observar o capitão à distância, aproximou-se do navio e sem hesitar subiu as escadas para dentro. Admirou tudo ao seu redor. Sorriu sozinho. Sonhou para dentro.

- O senhor pode me levar consigo? – perguntou sem olhar para o capitão, ainda admirando tudo o que via.

- Fala comigo ou com o mar? – respondeu o capitão, igualmente sem olhar para o capitão.

- Com o senhor... eu acho.

- Não posso te levar. Não sei para onde vou.

- Não me importo, gostaria de ir mesmo assim.

- Não posso te levar, pois provavelmente eu não voltarei.

O garoto abriu a boca para responder prontamente, mas um fio de medo e responsabilidade perpassou sua mente antes que pudesse pronunciar qualquer palavra. Deve ter pensado em seus pais, sua casa, seus amigos. Tinha o sonho de desbravar o oceano, mas... havia tantas implicações. Antes que pudesse responder, calou-se. Acho até que se entristeceu. Silenciado, permaneceu admirando, mas agora era um admirador distante, alguém que acha belo e só, sem querer possuir.

- Acho que não vou, então. Ainda tenho algumas coisas para fazer por aqui – disse com voz inocente.

O capitão sorriu e olhou carinhosamente para o garoto. Reconheceu nele a criança que fora um dia. Imaginou quanto de vida poderia ensinar a ele.

- Ainda há muitas coisas a serem feitas, não tenho dúvida. Quando elas estiverem prontas e você não tiver mais com o que se preocupar e se nos encontrarmos por aí... – calou-se. Não espere que não haja mais nada a ser feito. Quando achar que é hora de seguir viagem, vá.

- Certo. Eu acho.

- Você sabe qual a maior invenção da humanidade, garoto? – o capitão continuou andando pelo navio, arrumando algumas poucas coisas. De onde estava, tinha que gritar para se fazer ouvir.

- Não – o garoto gritou de volta.

- É o sonho – ouviu como resposta o capitão gritar. – O sonho é a maior invenção da humanidade. Foi quando começamos a sonhar que passamos a saber o que queríamos no mais íntimo de nosso ser. O sonho pode ser transformador e encorajador, mas também pode ser uma grande prisão se não houver algo muito importante dentro de nós.

Fez-se silêncio enquanto o capitão voltava para próximo do garoto. Abaixou-se para ficar da sua altura e, com as mãos em seus ombros, olhou firme para o pequeno e continuou o seu sermão:

- Ousadia! É preciso haver ousadia para que um sonho não se torne uma prisão. Vê, o tempo hoje não é o melhor para se navegar. Virá uma grande chuva que me dará muito trabalho. O mar não está calmo, as condições são adversas. Eu posso ficar sonhando em seguir viagem por conta disso tudo ou posso ousar e realizar o sonho de partir.

- Você já foi ao mar muitas vezes. É mais fácil ousar assim, não é?

- Talvez. Mas eu não diria que já fui ao mar muitas vezes. Um verdadeiro marinheiro só vai ao mar uma única vez e de lá ele nunca volta. Ele apenas faz pequenas pausas em terra firme. E apenas quando precisa. A sua vida é o mar.

Os dois ficaram se olhando longamente até que o capitão decidiu que era hora de partir. Levantou-se e se despediu do menino bagunçando-lhe os cabelos. O garoto desceu do barco a contragosto, mas já estava suficientemente transbordando de emoções para continuar ali. Olhou o capitão sussurrar suas últimas palavras para o mar, imaginando que, de tudo o que já ouvira em sua vida, nada se comparava àquelas palavras. Deveriam ser belas e poéticas e encantadoras. Tão logo o capitão terminou de sussurrar, chamou a bordo a tripulação que aguardava em terra. Todos entraram, tomaram seus postos e o barco começou a navegar. Primeiro lentamente até ganhar velocidade e, aos poucos, distanciar-se no horizonte e aproximar-se do céu, onde haveria sempre mais um pouco de vida a ser deixada e de sonho a se alcançar.