quinta-feira, 10 de maio de 2012

À margem

As ruas ainda vazias, apesar do sol que já despontava a algumas horas no céu, prediziam a solidão ativa no coração de João. Caminhava entre casas pequenas, coloridas diversamente e com janelas de madeira branca que tomavam grande parte da parede. Todas as janelas estavam fechadas, impedindo que a claridade acordasse pessoas ainda entregues ao sono. Alguns paralelepípedos soltos exigiam atenção no andar e João seguia cabisbaixo para não tropeçar e para não encarar o caminho de frente. Seguia arrastando as sandálias friccionando-as contra as areias que o vento trazia da praia.

O clima ainda estava ameno e a maré começara a subir quando João chegou à praia e pôde visualizar alguns pescadores a trabalhar. Puxavam as redes que lançaram à noite, enchiam a embarcação de alimento para suas mesas. A cena era poética, bela. O mar, o homem, o peixe. Grande mistério, trabalho, sustento. João pensou que tudo era providência. Ou que talvez o homem tivesse aprendido a se adequar tão poderosamente ao mundo à sua volta que tudo parecia existir para lhe servir, para ser conquistado. De fato, o homem conquistara cada ambiente: a terra, o mar, os céus. Não havia lugar onde não pudesse chegar, não parecia haver fronteiras na natureza que impedissem a sua passagem, a sua chegada, e a subjugação de toda vida à sua vontade. Logo, também o espaço estaria tomado pela soberania da espécie humana. João pensou tudo isso com um pouco de admiração e muito de desprezo.

Tirou as sandálias e continuou seu caminho pela praia, sentindo a areia fina e fria entre os dedos calejados. Não tinha direção, nem compromissos para o dia. Esperava poder ir a qualquer lugar pelo tempo que fosse necessário para chegar lá. Deixou-se levar, olhando fixamente para o alto mar, maravilhando-se com a imensidão quase infinita que estava à sua frente. “Mexe comigo essa coisa de infinito”, pensou. “Só consigo enxergar até ali, mas sei que ele vai mais além, e mais além, e mais além...”. Não sabia dizer o que o encantava mais: o infinito do universo ou o fato de a vida parecer tão importante apesar de tão pequena. Olhava o horizonte e via o encontro entre céu e mar. Duas realidades distintas, um tão mais infinito que o outro, ambos belos e inspiradores. E do outro lado do horizonte, em sua pequenez, olhos capazes de se admirarem. “São grandes e belos, o céu e o mar, se há quem os observe, ou são plenos em si?”.

Os pensamentos corriam, assim, soltos. Sem a pretensão de fazerem sentido ou de conduzirem a quaisquer conclusões. Era quase como uma limpeza mental. Fazia-lhe bem.

Já passada a manhã, o humor o conduziu para dentro da pequena cidade. Quis ver pessoas, olhar em seus olhos, imaginar seus percursos. Sem deter-se em lugar algum, percorreu ruas, olhou vitrines e cumprimentou quem encontrava.

O dia passava rápido apesar da aparente ociosidade de João. Chegou a um dos limites da cidade, de onde podia ver o mar do alto, bem alto. Estava sobre uma pequena chapada, arborizada e com um parapeito que o impedia de chegar próximo à borda. João pousou o braço sobre a madeira do parapeito e inclinou o corpo para sentir a brisa e apreciar mais um pouco a visão.

Caía a tarde, as primeiras estrelas começavam a aparecer e o sol, magnificamente belo, descia rapidamente às costas de João. Hoje, ele decidiu observar não o pôr-do-sol, mas o anoitecer. Via o azul tornar-se negro e a escuridão tomar conta de uma paisagem a pouco tão viva e repleta de luz. Ficou ali até que pudesse ver apenas um imenso abismo negro abaixo da chapada. Imóvel... absorto... Fitou a escuridão, desafiando-a a penetrar seu coração com toda a força. Percebeu-se capaz de vencê-la, percebeu-se forte mesmo em sua solidão. Talvez a própria solidão o tenha enriquecido, ajudado a conhecer-se e, portanto, o tornado senhor de si.

Decidiu voltar para casa, mas antes de sair, reparou que a poucos passos de onde estava havia uma escada, mal cuidada, a princípio perigosa, que descia pela borda da chapada até... A noite o impedia de ver. Enxergava muito pouco e a escada desaparecia em meio ao nada. “Para onde?”, pensou.

Numa noite escura, tendo seguido durante todo o dia para o limite de cidade já conhecida, João, às bordas de um abismo e às margens de si, deparou-se com uma escada que não sabia para onde ia. Desceu.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Sobre palavras

Palavras me encantam, brilham meus olhos. Elas me fazem enxergar, com os olhos da alma, o que eu nunca poderia ver fisicamente. Me fazem ter sensações diversas: de amor a ódio, de nojo a deslumbramento. Em um únicipo parágrafo cabem muitas vidas, a cada palavra a ser escrita uma infinidade de possibilidades se abre: mundos inteiros, histórias fantásticas, personagens magníficos.


Há quem diga que as palavras tem poder. "Não diga isso, atrais coisa ruim" ou "repita isso todos os dias, o pensamento positivo pode criar o que você quiser". Eu não acredito nisso. Acho apenas que as palavras inspiram. Inspirar... Inspirar...


Coisa mais vital à vida é a respiração. Tudo o que fazemos, o fazemos por uma motivação. Quando a motivação é grande e vem lá de dentro, lá do nosso coração, chamamos de inspiração. E da inspiração, a consequência lógica é a expiração. Expiramos ações, atos e gestos concretos que nos fazem construir ou destruir, unir ou separar, irritar ou tranquilizar. São essas ações que tem poder. É o que fazemos de concreto que nos traz coisas boas ou ruins e as levam para os outros. Inspiramo-nos com palavras, expiramos em ações. Inspiramo-nos com palavras, expiramos em ações.


E se a palavra é forte o suficiente para inspirar a ser melhor, expiramos alguém que se forma e que constroi. Se a palavra inspira a se doar, a unir e a fazer-se um, expiramos uma pequena célula de sociedade que vive diferente. É sempre um processo de dentro para fora; uma sublimação do nosso interior para o exterior. É um sentir-se emocionado que se converte em lágrimas; um sentir-se alegre que se abre em sorriso; é um sentir-se amargurado que se converte em isolamento; é um sentir-se desafiado a construir um mundo novo que se converte em amor concreto.


São as palavras do Evangelho, que nos inspiram e desafiam a amar. Amor que transforma.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

1 mês de parágrafos

1 de janeiro

Tudo novo, diriam alguns, mas para João nada parecia assim tão diferente. Na verdade, tudo estava assim... igual. Trabalhou na sexta, trabalharia na segunda, a rotina continuaria a mesma, exceto pelo trânsito mais livre nas ruas de janeiro. Não podia concordar que tudo era novo. Mas havia de ser honesto consigo, a sua disposição era outra, era nova. Era a vontade de fazer as coisas diferentes e a determinação clara em fazê-las. E, estando disposto a isso, se o fizer, tudo se fará novo. O ano já era outro, mas o novo ainda estava por vir...

2 de janeiro

É como começar um novo livro. Primeiro você abre uma página aleatória, aproxima o nariz, cheira aquele cheiro gostoso de livro novo. Saboreia esse cheiro, mexe com o livro, brinca com ele em suas mãos, lê as orelhas, lê a contracapa e fica imaginando quantos mundos serão conhecidos, quantas essências descobertas e com quantos personagens magníficos você irá viajar nas aventuras que você está prestes a ler. Fica só imaginando, mas quando lê, sempre se surpreende, porque é sempre muito mais do que esperamos.

3 de janeiro

Hoje me deu muita vontade de controlar o futuro. Daí pensei em quão pequena é essa vontade visto que, muitas das vezes, as surpresas do futuro são as melhores coisas da vida. Lembrei também de uma tira do Calvin&Haroldo em que o tigre diz: 'O problema do futuro é que ele está sempre se transformando em presente'. Se nem o presente posso controlar, que dirá o futuro. Pois que venha o futuro, e se torne presente. E eu, que não me arrependa do passado.

4 de janeiro

Queria viver em um mundo onde as máscaras caíssem e se desfizessem em pedaços para não poderem mais ser vestidas. Em um mundo onde todos fossem o que são e nada mais, sem medo de se mostrarem e de se demonstrarem. Em que sentimentos fossem expressos tal como estão sendo sentidos e as palavras significassem apenas o que significam, sem direito a segundas interpretações ou sentidos velados. Queria viver em um mundo assim: ideal. Mas que posso fazer se esta minha vontade é só mais uma de minhas máscaras?

5 de janeiro

Naquela tarde morna de quinta-feira, João desejou fazer algo bem diferente. Como lhe faltavam opções e oportunidades e a preguiça era maior que a vontade de criá-las, apenas ficou meio sem fazer nada, meio assim parado e pouco pensativo. Assim, não fez nada, mas o fez com espírito despreocupado e isso foi suficientemente diferente para ele naquele dia. Concluiu que não precisava se esforçar para algumas coisas, só não podia fazer disso uma rotina.

Dia 6 de janeiro

Nos poucos tempos livres em que consegue se livrar, João deleita-se com o doce sabor do silêncio. Mergulhando no interior de seu eu, encontra-se consigo e fala baixo, sussurra para si seus desejos mais íntimos. Ali, naquele silêncio, se redescobre e apruma-se para buscar, determinado, o que realmente quer. E então, assume novamente o posto de sua vida e vai. Vai! Não basta a vontade, João. Não basta querer. Vai!

Dia 7 de janeiro:

O corpo cansado caminha lentamente para lugar algum, com pernas doloridas e braços meio abertos incapazes de se movimentar. Com a vista fraca, olhos opacos e rugas no rosto, os dias se seguem lentamente, como relógio de pulso que para a cada pulsar e só torna a tiquetaquear uns instantes depois, fazendo o tempo ser o dobro, o triplo. Tic Tac. Só resta a espera de dias assim e a esperança de sempre poder continuar sorrindo e feliz. Lembranças dos anos que passaram e das alegrias saboreadas. Sorrir é o que os torna vivos!

Dia 8 de janeiro

Amanhã, pensou João, amanhã! Deitou-se e tentou dormir, apesar dos muitos pensamento conturbados e do imenso frio na barriga. Tentou afastar medos e angústias, mas se acalmou apenas quando começou a rezar. Rezou até que o corpo exausto se deixasse levar pelo sono, esperando, ansioso, que o dia seguinte lhe trouxesse paz e calma para fazer o que deveria ser feito. Esperou e confiou. No dia seguinte, ao acordar, lembrou-se de começar agradecendo a oportunidade de viver. Apesar de tudo o que ainda não estava resolvido, reconhecia o presente e a aventura que havia nessa pequena palavra: Vida!

Dia 9 de janeiro

A grande loucura de nossos dias é deixarmos de viver os nossos sonhos em prol de uma segurança que nos mantém pregados ao chão. É uma sociedade construída sobre o pilar da necessidade que não se precisa, necessidades criadas para nos dar a impressão falsa e egoísta de estarmos sendo alguém. A grande loucura de nossos dias é nos vendermos a essa loucura por medo de não nos encaixarmos nesse mundo perdido caso não nos vendamos. A grande coragem é enfrentar esse medo e arriscar a felicidade naquilo que brilha nossos olhos, é escolher, livremente, viver a nossa própria vida.

Dia 10 de janeiro

São 2h da manhã e João nascerá. Nascerá como ser humano demasiadamente humano.

Acontece que João acordou numa segunda-feira de manhã chuvosa melancólico e inseguro. Perdeu o horário do ônibus e, nervoso, brigou para sair com o carro do pai. Chegou no trabalho cansado, mas lá conseguiu se distrair com futilidades da internet, conversas sobre a rodada de futebol do fim de semana e comentários sobre a manhã chuvosa da tão 'amada' segunda-feira. Não trabalhou o que deveria, deixando muito para o dia seguinte. Passou o dia assim, entre a sensação efêmera e passageira do bem-estar e o contido desânimo e tristeza de quem não se resolveu em um monte de aspectos de sua vida tão pacata, sem problemas reais e mesquinha. Não que sua vida seja assim, mesquinha, ou que não tenha problemas reais, apenas era assim que ele se sentia no momento. Durante o dia, amou, rezou, sorriu e fez sorrir, mas também odiou, ficou nervoso, tenso, preocupado, inseguro e egoísta. Ah! João foi tantas vezes egoísta! Mesmo nas horas em que ajudou, se dispôs e amou, não o fez sem esperar um "muito obrigado" e uma boa sensação de bem-estar em troca. Tudo o que João fez foi assim, buscando uma retribuição ou um "sentir-se bem". E João foi dormir com a estranha sensação de querer ser mais, ou ser menos do que já é, mas sem muitas esperanças de acordar assim tão diferente no dia seguinte. Este é João, tão eu, tão você...

Dia 11 de janeiro

Entre luzes e sombras, vivemos buscando. Entre sombras e luzes, às vezes erramos. Seguimos, no entanto, caminhando, guiados por luzes, rodeados por sombras. Algumas vezes pisamos no claro, outras corremos no escuro. Onde quer que vamos, lá estão elas: luzes e sombras. Não por que estejam em todos os lugares, mas por que as carregamos conosco.

Dia 12 de janeiro

De onde menos se espera, surge a vida, brota a fé. Entre tantas desesperanças, entre tantos desassossegos, há uma luz, um coração disposto a se doar. Entrega desinteressada, doação humilde e cheia de coragem de quem, tendo tão pouco, se vê capaz de ajudar. Ajudar e esperar: Deus dará em dobro. E eu aqui com tanto... e eu aqui com tanto, me vendo obrigado a aprender com quem eu deveria ensinar. Obrigado pela esperança reacendida... obrigado!

Dia 13 de janeiro

Por trás das nuvens, lá onde a vista não chega, por dias se esconde, por dias descansa o sol. Esse sol que aquece e dá vida, mas que às vezes dá vez às águas que saciam a sede e regam as terras que alimentam e brotam em flor. Esse sol, que ao sair, faz sorrir, faz correr, faz sair do abrigo. Mas não se engane, não se espante, se depois voltar o vendaval. Esse sol, que ao sair faz saborear, que faça trabalhar para quando ele de novo se esconder se tenha um bom abrigo pra descansar.

Dia 14 de janeiro

Certas coisas passam e viram passado. E só. Passou! Não é, não será, só foi. Lembranças. Algumas coisas, ainda, não chegam a ser. Lembranças, também? Memória? Não. São apenas possibilidades não concretizadas e para isso não se inventou um nome. Outras, são! Realidade, presente, concreto e dom. Essas fazem sentir, essas fazem viver, essas fazem sorrir... ou não. Há ainda as que serão, hão de vir. Possibilidades, previsões, "quem sabe"? Saberemos, viveremos, sentiremos. Seremos!

Dia 15 de janeiro:

Aprendemos com a vida que nunca saberemos de muita coisa. E que muitas vezes não precisamos saber, mas ter sabedoria. E que a sabedoria se alcança aprendendo e também errando. E que no erro a gente se fortalece. E que sempre haverá uma barreira para a qual ainda estaremos fracos. E daí, erramos novamente. E nos fortalecemos ou sucumbimos, à nossa escolha. Eu escolho ser forte.

Dia 16 de janeiro:

Para servir e amar é preciso primeiro ser dono de si. É preciso dominar-se com a mesma presteza com que se guia um carro, por que quando se perde o seu controle, não é possível levá-lo para o seu destino correto. Quando se perde o controle de si, não se pode saber para onde se vai, sequer se sabe o que se quer, se é que quer. Não se pode ser luz, se o interior é só escuridão.

Dia 17 de janeiro:

Primeiro um passo. Depois outro. Depois outro. Até que você para e percebe que não sabe mais em que direção seguir. Como dar o próximo passo? Você espera, observa, estuda cada caminho, mas nada clareia suas ideias. Nenhuma decisão é tomada e entre tantos medos e desacertos do passado você decide ficar parado e esperar alguma nova situação aparecer para continuar caminhando menos cegamente. E você espera. E o tempo passa. E quando você olhar para trás, descobrirá que não ter feito nada também foi dar um passo, só não se sabe ainda em qual direção.

Dia 18 de janeiro:

Numa tarde nublada, sentado em um banco de praça próximo a árvores frondosas, João apreciava um belo livro sobre guerras, reis, cavaleiros e damas. Entre uma página e outra, descansava a vista e imaginava as cenas que acabara de ler com uma vivacidade única, proporcionada apenas por aquelas grandes histórias que se fazem acontecer só nos pensamentos. Num desses momentos, João observou uma pequena folha que se desprendeu de seu galho. Caía numa dança leve e bela que inspirava e fazia nascer belos pensamentos. Tentou imaginar, em segundos, o caminho que ela faria. Viria um vento e a levaria para longe, fazendo-a subir antes de sua última queda sobre o chão cheio de outras folhas? Continuaria a dança e desceria em espiral até seus pés, onde poderia pegá-la, cheirá-la e até guardá-la para si como recordação? Cairia a meia distância? Sua queda seria só ilusão? Imaginava... enquanto a folha caía...

Dia 19 de janeiro:

Adormeço. Recomeço. Tudo começa, ou deveria, com um bom dia. Levanto. Alongo. Caminho. Abro portas, torneiras e caminhos. Abro sorrisos, canto canções. Dou passos largos, passos curtos. Passo. Pauso. Como. Como quem ainda quer cama, saio. Encontro pessoas. Repito percursos. Trabalho com calma. Trabalho mais um pouco. Impaciente me torno. Suporto. Logo, retorno. Cansado, respiro fundo e me alivio. É noite. Com um banho, descanso. Gasto o tempo, passo o tempo, saboreio o tempo restante. Adormeço. Recomeço.

Dia 20 de janeiro:

Ele queria uma paixão nova, daquelas que, com apenas um sorriso, lhe despregavam do chão quando estava caído. Daquelas que lhe erguiam a cabeça e faziam seu coração bater forte, muito forte, bem forte. Daquelas que se eternizavam em um abraço e lhe deixavam tímido em manter um olhar. Mais, queria aquela paixão que lhe despregava do chão, lhe erguia a cabeça e, timidamente, o fazia voar. Ah! Voar! Sensação única de liberdade e rebeldia, de prazer e alívio, de paz. Sabia que após o vôo muitas vezes vinha a queda. E a queda doía e lhe arrancava o que de bom ganhara. Ah! A queda, tão dolorosa às vezes. Sabia da queda, lembrava dela, mas depois que o tempo passava, ah! a lembrança do vôo era só o que restava. E da queda, apenas uns pequenos arranhões para contar história. É! Ele queria uma paixão nova.

Dia 21 de janeiro:

Um parágrafo curto, rápido, corrido. Sem tempo, na pressa, escrevo rápidas linhas sem muito pensar. Quase esqueço de fazê-lo, quase me perco no ponteiro. Ainda uma noite inteira, ainda mais alguns dias, ainda muito tempo necessário no relógio.

Dia 22 de janeiro:

Música! O som, a melodia, a batida, a voz, a harmonia... O coração que bate num mesmo ritmo, o corpo que se move e dança. Viver no refrão, esperar nos versos, pausar nos finais, recomeçar. Ouvir. Fechar os olhos e deixar as notas emergirem como pingos de chuva que afagam a pele cansada pelo calor do trabalho. Afinar-se, deitar e deixar o sonho ser canção.

Dia 23 de janeiro:

João teria muitas coisas a dizer, muitas coisas que gostaria de fazer e outras tantas que gostaria de... de pular! Mas João, pobre João, tem uma imagem a zelar.

Dia 24 de janeiro:

Tudo estava por acabar. Tudo! Tudo o que conheciam, tudo o que viriam a descobrir, tudo o que sabiam, tudo o que eram, toda a consciência e moral. Tudo! Não havia porque correr. Não havia para onde correr. Contentaram-se em esperar. Espera paciente e angustiante. Coração apertado e sofrido, sem saber o que esperar. Seria rápido? Sentiriam dor? Veriam o mundo se acabar aos poucos e o sofrimento aparecer em cada rosto? Ou simplesmente, desfaleceriam num piscar de olhos? Espera... Espera... Num instante, um estrondo de proporções gigantescas tomou conta de toda a Terra. O céu se encheu de luz cegante e o ar se poluiu de fumaça e cinzas. Cada célula viva tremeu e se foi. Tudo num piscar de olhos, que jamais se abriram.

Dia 25 de janeiro:

Chegou um pouco mais cedo em casa naquela tarde chuvosa de janeiro, sentindo o corpo levemente pesado. Entrou no chuveiro e deixou a água e os pensamentos escorrerem, livres como são. Saiu do banho um pouco mais amolecido, mas ainda necessitado de energias renovadas. Colocou sua samba-canção mais confortável, escureceu o quarto como pôde, deitou sobre a cama e cobriu-se. O sono merecido dos cansados, que tantos cansados mereceriam mais que ele. Aguardou, não muito, até que dormisse. Acordou algumas vezes, mas voltou a dormir e saboreou aquele momento simples e bom de um dia-a-dia às vezes tão corrido.

Dia 26 de janeiro:

“E agora?”, pensou. Estava cansado, exausto na verdade, e ainda tinha muito que fazer. Sem dormir a mais de 72 horas, seus olhos pesados enxergavam embaçado e dobrado. O corpo fatigado continuava caminhando sem fim e embaixo de um sol escaldante que agora estava a pino. Caminhava rumo a algum lugar onde pudesse encontrar quem o ajudasse. “Ou permaneço caminhando ou morro. Apesar de que morrer não parece ser uma má opção.” O que lhe fazia caminhar? Por que não entregar as pontas e abandonar-se inerte, sem vida, no meio daquele nada? Nada! Não sabia... não sabia porque persistia. Apenas caminhava, semi-morto, rumo a qualquer lugar.

Dia 27 de janeiro:

Então pronto! Ele iria escrever um conto curto bem sombrio enquanto seus amigos saboreavam um delicioso açaí ali num bar. O conto deveria ter sombras das mais sombrias que ele pudesse imaginar. O problema é que só conseguia imaginar suas próprias sombras com pouca clareza. E elas não lhe pareciam suficientes. Teria que adentrar a frieza e escuridão de um bandido, de um assassino. A mente de um homem entregue aos vícios e medos, inseguranças, depressão, pânico, pavor, horror... Adentrar a vida amargurada e cheia de peso esmagador de uma história sofrida, de um coração rejeitado e espancado pelo próprio pai. Uma história de perdas, estupros e outras violências físicas, psíquicas e emocionais que levaram a escolhas duras de perpetuação do mal, da dor e da morte. Sombras das mais sombrias lhe passavam pela cabeça, mas, sem coragem, não chegavam ao papel. Sombras que todos temos, mas que só existem porque em algum lugar incide alguma luz.

Dia 28 de janeiro:

Olhando assim, distante, são tão pequenas essas estrelas. Minúsculos pontos luminosos imóveis em um extensíssimo céu negro. Ínfimas criaturas, servindo apenas para nos guiar de vez em quando e iluminar uma noite que, de outra forma, seria mais treva. Olhando assim, de longe, poderia até não reparar tanto nelas, se sua incontável quantidade não nos chamasse tanta atenção. Ah! Mas se eu as pudesse olhar de perto... Se pudesse por alguns instantes me aproximar e admirar a vastidão de suas superfícies quentes e brilhantes, poderosas e explosivas! Quisera vê-las nascer e, em velocidade super rápida, acompanhá-las em todo seu desenvolvimento de bilhares de anos. Tempo incompreensivelmente finito. Imagino o som ensurdecedor que fariam. Imagino-me fascinado com toda a sua magnitude hipnótica. Sentiria-me assim, inútil, pequeno, fugaz, pouco, breve, pó, nada... Mas sentiria-me feliz, talvez, por poder contemplá-la em todo seu esplendor

Dia 29 de janeiro:

Por onde começar? Por onde continuar? Que caminho seguir? Voltar? Persistir? Desviar? Parar? Reconhecer o caminho errado e... e o quê? E pra onde? E pra quê? Esperar? Se ausentar? Sentar e esperar? Será que não fazer já é decidir? Já é escolher? Questionar-se? Passar o tempo? Deixar passar? Passado? Viver o presente e só? Querer um futuro melhor? Lutar? Se esforçar? Deixar? Largar? Querer? Esquecer? Angustiar-se? Renovar-se? Ser essência e muito mais? Sentença? Tenta? Lembra? Me entenda. Por que eu não!

Dia 30 de janeiro:

Uma porta! Que haverá do outro lado? Um parque de criaturas ancestrais revividas pela ciência de clonagem? Uma policial tentando encontrar um criminoso com a ajuda de um assassino em série? Um mundo ameaçado de extinção por não haver crianças com imaginação? Ou quem sabe um outro mundo em que bruxos e trouxas convivem, sem que estes saibam da existência daqueles? Talvez seja uma terra inteira em guerra por conta de um pequeno objeto, um simples anel. Monstros! Criaturas gigantescas e pavorosas a vinte mil léguas no fundo do mar! Pode ser também pessoas, como nós, vivendo suas vidas e dramas, em outras épocas ou nessa. Pode ser tanta coisa. A princípio, apenas uma porta. Pra saber o que há do outro lado, vire a capa.

Dia 31 de janeiro:

Adeus mês velho! Feliz mês novo! Que se faça no novo mês o que no velho não se fez. Que os propósitos já esquecidos sejam retomados. Os propósitos vividos que sejam revigorados. E que a cada novo dia (pra quê esperar um ano? pra quê esperar um mês?) a gente possa renovar os votos de nova vida, esperança e paz nos corações. Mas os vivamos conscientes de que são precisos atos concretos e constantes a cada nova hora, a cada novo minuto. Agora!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Sobre despreocupar-se

Mais uma vez se via sem iniciativa diante de tantas coisas que aconteciam em sua vida. O propósito de ano novo de ser mais seguro de si, confiante e proativo já ia se desfazendo logo nas primeiras semanas do ano. A consciência de que tão pouco dependia dele impedia-lhe de agir, fazendo com que permanecesse parado, quieto, sem movimentos e perdido entre um ato e outro do teatro em que viraram seus dias. Um teatro em que o ator principal parecia ser... o acaso talvez.

Mas, pensava consigo, que podia fazer se pouco dependia dele? E isso não era fuga, tampouco era desistência. Era fato consumado. Doloroso, mas fato. Dessa forma, cansado de lutar contra forças que não podia mover, decidiu que gastaria suas energias em algo em que pudesse fazer diferença real e substancial. Entregou-se ao acaso naquilo que não mudaria, desprendeu-se da preocupação de fazer dar certo e relaxou pela primeira vez desde as zero hora do primeiro dia do ano. Percebeu que o peso de fazer novo o que era velho impedia-lhe de saborear a beleza da mudança e que a mudança não aconteceria se permanecesse pregado de preocupação e culpa.

Ao se permitir não agir e não tentar controlar tudo ao seu redor, potencializou energias naquilo que poderia mudar. E começou assim, primeiro um passo, depois outro, na esperança de ir longe, bem longe e, quem sabe um dia, poder voar.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Sobre ser dia

às vezes me acontece
de eu me acontecer.
passo horas, passo dias,
passos dou, pássaro sou.
se me acordo, a cor dou,
e pinto os meus minutos,
desenho-me onde vou.
escrevo meu destino,
selo minhas cartas,
que vivo para quem serei.
serei pássaro? serei peixe?
só não me importa o que terei.
entardeço-me, ocasiono-me,
acontece-me de me acontecerem.
caio, e não me levanto, mas aproveito.
vejo, caído, estrelas que nascem,
brilham sorrisos, que notícias trazem?
brilham, e é tudo o que fazem.
isso lhes basta, e se bastam.
anoiteço-me, adormeço-me,
pinto meus sonhos,
sonho roteiros,
canto com grilos,
fujo labirintos,
corro e não saio,
saio voando.
meus sonhos mais loucos,
ser louco nos sonhos.
sou louco? só sonho.
louco se não sonho,
louco se não sonho,
louco, louco, louco.
esclareço-me, amanheço-me.
auroro e irradio-me,
respiro sereno,
resgato orvalhos,
rego meus planos,
enxáguo minhas lágrimas,
vivo.
vivo louco
só por isso sou
vivo.
vivo louco
e só por isso sou.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sobre um menino e um capitão

O capitão levantou com a aurora amanhecendo no horizonte. Caminhando pela areia lentamente, espreguiçando-se, apenas meio acordado, contemplou o imenso mar azul pelo qual deveria navegar. Seus olhos lacrimejaram. Seu coração ardia, batendo em disparada. Suas mãos, mãos de ferro e de brandura, dançavam no ar guiando como um maestro as ondas do mar. Rejubilava-se. Em um dia estaria embarcando rumo à última de suas viagens. Esperou pacientemente o sol se erguer majestoso, enquanto, aos poucos, toda a cidade acordava e dava vida às ruas e ruelas. O porto foi enchendo preguiçosamente e os ruídos dos barcos e máquinas se sobrepuseram ao leve e doce som do mar. O marulhar levantava os barcos suavemente enquanto a orla ia se desfazendo à medida que mais barcos e canoas se achegavam ao porto.

Tudo era movimento. Tudo era som. Tudo era pressa. E tudo contrastava com a maravilhosa calmaria do mar, com o doce som das ondas a bater nos rochedos nus, com a harmonia do gigante que ora dormia sereno, ora roncava alto, qual cão de guarda atento aos perigos da rua. O capitão amava o mar, e gostava de imaginá-lo assim, como um gigante adormecido.

As horas passaram despercebidas. A manhã se foi sem que o capitão sequer saísse de seu posto ou falasse uma palavra. Os marinheiros o conheciam suficientemente bem para saber que não deveriam se intrometer naquela solenidade: o capitão olhava o mar, um pouco de cada vez, ouvia-o, sentia-o, deixava-se tomar conta pelos mistérios contidos em toda sua imensidão, pulsava com o mar, era um com o mar; e o mar, em retribuição, lhe lançava afagos e canções, contava-lhe histórias, tocava-lhe o coração e lhe deixava claro, claro como o céu mais limpo de nuvens, que ele, o mar, jamais poderia ser abarcado, jamais. Tudo isso acontecia sem que precisassem se tocar, como num ritual em que o divino e o humano se compartilham, sem que o divino desça ou o humano transcenda. Mas o ritual nada mais é que uma primeira porta de entrada, e dessa solenidade entre capitão e mar sempre nascia o contato íntimo do adentrar-se. Todos já sabiam, então, que o capitão partiria em mais uma viagem.

A tarde caía, o céu azul-laranja escurecia e o porto ia dormindo lentamente. Pôde-se ouvir novamente o som do marulhar, e apenas ele. Gaivotas voavam ao longe alheias ao mundo dos homens. Levantavam vôo alto e desciam em rasantes sobre o mar para se alimentarem. Tocavam leve e brevemente as águas e arremessavam-se novamente ao escuro azul do céu. O capitão acompanhava essa dança e, inevitavelmente, deitava seu olhar sobre o horizonte.

- Sabe, menino – disse, sem desviar o olhar fixo no horizonte, ao garoto que por horas estava sentado no banco, observando-o, fascinado.

O garoto se levantou de um salto, como se tivesse sido acordado de um pesadelo horrível. Estava atento e sem dizer uma palavra demonstrou todo interesse em ouvir as palavras que se seguiriam.

- ... há quem diga – continuou o capitão – que o céu e a terra se encontram na linha do horizonte. O que você acha disso?

- A... acho que... que se a gente se aproxima do horizonte, o céu e a terra só se tocam mais na frente. Sempre é mais na frente, não é?

Os dois se entreolharam. Quieto, o capitão pareceu voltar ao estado inerte daquele dia. Estava refletindo sobre as palavras do pequeno.

- É sempre mais a frente. Você me surpreendeu, sabia?

O silêncio reinou por minutos. Ambos olhavam para o mar, para o horizonte distante que jamais poderia ser alcançado.

- Eu costumava acreditar – começou o capitão, interrompendo o silêncio – que o céu e a terra se encontravam não no horizonte, mas no coração dos homens. Com suas palavras, agora, penso que talvez eles nunca cheguem a se tocar, por que sempre há mais de céu a buscar e mais de terra a se deixar.

- Capitão, será que um dia eu serei um marinheiro tão famoso quanto o senhor? – o garoto perguntou sem respirar, como se segurasse a pergunta há muito tempo.

- Famoso é o mar, pequeno. Nós, marinheiros, apenas o fazemos ser conhecido. O marinheiro que se preocupa com famas e glórias deixa de lado o mais importante dessa profissão: conhecer o mar e conhecer-se a si mesmo ao navegar.

O garoto sorriu largamente. De alguma forma aquelas palavras lhe tocavam o coração e lhe indicavam um caminho excelente a ser seguido, um percurso que valeria a pena ser percorrido.

- Eu quero me conhecer, capitão. E quero conhecer o mar.

- Esse é um belo sonho. Um sonho que vale a pena ser sonhado por que nunca será suficientemente alcançado.

Deixaram-se calar pelo resto do dia até se despedirem silenciosamente. Enquanto o menino voltava para casa equilibrando-se em meio-fios, o capitão se dirigiu a seu barco, sua casa, onde passaria a última noite próximo à terra. A lua, que até então iluminava a orla, escondeu-se por trás das nuvens, escurecendo os sonhos do capitão.

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No dia seguinte, as nuvens decidiram não mostrar o sol. O vento gelado arriscava-se entre as ruelas e cortava as faces corajosas que saíam de casa cedo. Não eram muitos os corajosos a enfrentar o frio, somente os mais curiosos. Queriam ver o capitão e sua despedida. Era quase como um teatro ou uma dança: o capitão preparava algumas palavras de despedida para a terra, sussurrava palavras inauditas de boas vindas ao mar. Levantava velas, içava âncora, tudo em movimentos belos e serenos e comoventes. Aqueles que assistiam à quase celebração voltavam para casa um pouco mais calmos, um pouco mais íntimos da natureza e seus mistérios, um pouco mais próximos do transcendente que se deixava tocar durante aqueles breves minutos.

Quando os primeiros rostos começaram a aparecer na orla, já encontraram o capitão a meio caminho da celebração. Movia-se de um lado para o outro em silêncio profundo. Seus passos eram leves como se não quisesse acordar quem dormia no andar de baixo, o gigante adormecido. Vez ou outra, detinha-se e lançava olhares amáveis para o horizonte. Não parecia se importar com o mau tempo. Não parou quando alguns poucos pingos de chuvisco ameaçaram derrubar um grande temporal. Apenas parou alguns segundos após um tremendo trovão que assustou a todos. Parou em sinal de respeito às forças da natureza, mas logo continuou com o ritual. Ele era suficientemente próximo do mar para não temê-lo, pensavam todos.

Entre a multidão que se adensava, estava ali um pequeno garoto, nariz escorrendo, pescoço coberto por um grande cachecol que quase o afogava. Depois de observar o capitão à distância, aproximou-se do navio e sem hesitar subiu as escadas para dentro. Admirou tudo ao seu redor. Sorriu sozinho. Sonhou para dentro.

- O senhor pode me levar consigo? – perguntou sem olhar para o capitão, ainda admirando tudo o que via.

- Fala comigo ou com o mar? – respondeu o capitão, igualmente sem olhar para o capitão.

- Com o senhor... eu acho.

- Não posso te levar. Não sei para onde vou.

- Não me importo, gostaria de ir mesmo assim.

- Não posso te levar, pois provavelmente eu não voltarei.

O garoto abriu a boca para responder prontamente, mas um fio de medo e responsabilidade perpassou sua mente antes que pudesse pronunciar qualquer palavra. Deve ter pensado em seus pais, sua casa, seus amigos. Tinha o sonho de desbravar o oceano, mas... havia tantas implicações. Antes que pudesse responder, calou-se. Acho até que se entristeceu. Silenciado, permaneceu admirando, mas agora era um admirador distante, alguém que acha belo e só, sem querer possuir.

- Acho que não vou, então. Ainda tenho algumas coisas para fazer por aqui – disse com voz inocente.

O capitão sorriu e olhou carinhosamente para o garoto. Reconheceu nele a criança que fora um dia. Imaginou quanto de vida poderia ensinar a ele.

- Ainda há muitas coisas a serem feitas, não tenho dúvida. Quando elas estiverem prontas e você não tiver mais com o que se preocupar e se nos encontrarmos por aí... – calou-se. Não espere que não haja mais nada a ser feito. Quando achar que é hora de seguir viagem, vá.

- Certo. Eu acho.

- Você sabe qual a maior invenção da humanidade, garoto? – o capitão continuou andando pelo navio, arrumando algumas poucas coisas. De onde estava, tinha que gritar para se fazer ouvir.

- Não – o garoto gritou de volta.

- É o sonho – ouviu como resposta o capitão gritar. – O sonho é a maior invenção da humanidade. Foi quando começamos a sonhar que passamos a saber o que queríamos no mais íntimo de nosso ser. O sonho pode ser transformador e encorajador, mas também pode ser uma grande prisão se não houver algo muito importante dentro de nós.

Fez-se silêncio enquanto o capitão voltava para próximo do garoto. Abaixou-se para ficar da sua altura e, com as mãos em seus ombros, olhou firme para o pequeno e continuou o seu sermão:

- Ousadia! É preciso haver ousadia para que um sonho não se torne uma prisão. Vê, o tempo hoje não é o melhor para se navegar. Virá uma grande chuva que me dará muito trabalho. O mar não está calmo, as condições são adversas. Eu posso ficar sonhando em seguir viagem por conta disso tudo ou posso ousar e realizar o sonho de partir.

- Você já foi ao mar muitas vezes. É mais fácil ousar assim, não é?

- Talvez. Mas eu não diria que já fui ao mar muitas vezes. Um verdadeiro marinheiro só vai ao mar uma única vez e de lá ele nunca volta. Ele apenas faz pequenas pausas em terra firme. E apenas quando precisa. A sua vida é o mar.

Os dois ficaram se olhando longamente até que o capitão decidiu que era hora de partir. Levantou-se e se despediu do menino bagunçando-lhe os cabelos. O garoto desceu do barco a contragosto, mas já estava suficientemente transbordando de emoções para continuar ali. Olhou o capitão sussurrar suas últimas palavras para o mar, imaginando que, de tudo o que já ouvira em sua vida, nada se comparava àquelas palavras. Deveriam ser belas e poéticas e encantadoras. Tão logo o capitão terminou de sussurrar, chamou a bordo a tripulação que aguardava em terra. Todos entraram, tomaram seus postos e o barco começou a navegar. Primeiro lentamente até ganhar velocidade e, aos poucos, distanciar-se no horizonte e aproximar-se do céu, onde haveria sempre mais um pouco de vida a ser deixada e de sonho a se alcançar.