terça-feira, 30 de março de 2010

Sobre conformar-se

Sentado em seu sofá, apenas olhando pela janela enquanto a televisão anuncia qualquer coisa. Os carros passam vagarosamente. As pessoas conversam, sorrindo. O mundo gira como se estivesse em câmera lenta, e seu coração bate como um tambor pulsante, marcando o ritmo da música. E a música que está sendo tocada é calma, convidando a uma dança a dois.

Ele estende o braço, alcança o controle remoto e desliga a tv. Como em uma cerimônia, levanta-se calmamente. Os primeiros passos parecem-lhe pesados e duros de se dar, mas logo a inércia é quebrada e ele percebe que não precisa mais se conformar a esse mundo. Pela janela, percebe o tempo esfriar. Rapidamente o sol se esconde e um vento impetuoso atinge as faces despreparadas, arrancando gritos de gargantas secas. O mundo agora corre para fugir da natureza que decidiu fazer seu show.

Ele não se importa. Não quer mais se conformar a este mundo. Abre a porta de casa, desce os degraus da varanda e anda até a rua, onde os carros passam sem se aperceber dele. Caminha pela calçada, mãos nos bolsos, indiferente aos que correm com medo da água. A chuva começa.

Num primeiro momento calma e fina, a chuva assusta e esconde em abrigos os seres humanos que tinham planos, reuniões, encontros. O vento continua forte e aos poucos os pingos são mais grossos e mais velozes. É impossível caminhar contra a chuva de olhos abertos. Ela simplesmente não se importa para onde você vai. A chuva apenas chove, não se conformando ao nosso mundo.

Ele caminha a favor do vento. Sentindo-se mais leve, apesar do frio e da roupa agora encharcada. Caminha até o fim da rua, não se importando com os conselhos ingênuos que o mandam voltar para um lugar seguro. Ele não quer se conformar mais a esse mundo. Saiu da caixa que o enquadrou e restringiu seus movimentos. Agora é livre, e tem todo o mundo como seu lar.

E do outro lado da rua vem-lhe ao encontro uma bela mulher. Molhada, andando contra o vento. E os dois se reconhecem, como tendo sido convidados para a mesma dança. Ele sente o coração bater, ainda no mesmo ritmo. E na chuva, entre carros e pedestres que correm desesperados, eles dançam no ritmo do mundo. Do mundo que é dono de si, e que não se conformou ao mundo que o homem criou. E dançam a sua dança.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Sobre um grão

João estava sedento. Caminhara durante horas sob sol a pino, acompanhando o cortejo sangrento de Jesus. Ao seu redor, muitos olhavam, com asco e indignação, as cenas de tamanha violência sendo usada contra um simples homem. Outros tantos choravam amargamente e sentiam, como que em seus próprios corpos, as dores do profeta que muito lhes ensinara. Ainda alguns olhavam com euforia sanguinária para o homem jogado e maltratado, alegrando-se e divertindo-se com a punição a um herege.

João caminhava, com o coração na mão. Não chorava, pois não havia mais lágrimas. Apenas caminhava a uma distância segura, suficiente para que Jesus o visse e, com sua presença, se confortasse.

O homem que até então fora tão altivo e de falar autoritário, mas suave, agora caía por terra não uma, mas várias vezes, sob o peso de uma imensa cruz. O homem que amara a todos, e só fizera o bem, sofria agora a maior das dores, como punição. A jovem inteligência de João nada podia compreender.

À sua frente, cabisbaixa e silenciosa, seguia Maria, mãe de Jesus. Calada, olhar distante. Algumas vezes, João via Maria fechar os olhos com força, contendo um choro que insistia em sair. Algumas mulheres se revesavam nos cuidados daquela pobre mulher, sofrida nas dores.

Chegaram finalmente ao local da crucifixão. Jesus largou de uma vez a cruz e caiu de costas. "Por que, mestre, a carregou até aqui?" - perguntava-se o jovem, sem entender. "Quantas oportunidades de fugir. Quantas oportunidades de desdizer as duras palavras ditas, para não precisar sofrer as consequencias. Por que, mestre?". E o coração apertado de João se rompeu novamente em choro. Enquanto isso, Jesus respirava fortemente, deitado de costas, olhando para o céu. Era um homem completamente indefeso e destruído. Culpado por suas palavras e seu amor incondicional.

Soldados aproximaram-se do homem deitado e ferido. João os viu levantarem a Jesus e despirem-no de sua manta. Jogaram-no sobre a cruz e seguraram seus braços abertos e seus pés sobre um apoio. As dores de Jesus anteciparam-se na imaginação de João. Sabia o que aconteceria a seguir e doía-lhe a alma por antecipação. Imensos cravos traspassariam seus pulos e seus pés. Quanto dor sentiria o mestre. Quanta dor! As mulheres pararam perto do ensaguentado e ali o contemplaram. Jesus não as olhava, sequer abria os olhos. João olhava para a cruz com Jesus, e algo em seu coração disse que tudo estaria bem. Não compreendeu, mas confiou.

O jovem colocou-se ao lado de Maria, mãe de Jesus. Passou os braços sobre seus ombros e abraçou-a. Nesse mesmo momento, um soldado segurava o braço direito de Jesus e sobre seu pulso pendia um cravo e sobre o cravo, um martelo. A batida precisa ferira o pulso de Jesus e um grito incontido correu por sua garganta. Juntamente com Cristo, gritou sua mãe, escondendo o rosto no peito de João. Chorava. Chorava. João viu o sangue escorrer sobre o braço da cruz. "Por quê, meu Deus? Por que permitis tão grande sofrimento a um servo teu? Por que não o tiras daí e mostras teu braço forte?". Um nova batida pregou mais profundamente o cravo no madeiro da cruz. Jesus já não gritava, apenas cerrava os lábios e um gemido rouco escapava-lhe da garganta. Mais duas batidas e mais sangue escorreu. E João apenas olhava atônito, perguntando-se, sem entender.

Maria já não olhava para a cruz, mas tremia a cada martelada ouvida.

O outro braço agora era pregado à cruz. João fechou os olhos e tentou relembrar os bons momentos com seu mestre. Enquanto ouvia as batidas do martelo sobre o cravo e os gemidos de Jesus, João lembrava-se de seu discurso após a multiplicação dos pães. Lembrava de seu semblante, sorridente, que dizia ser o pão da vida, e que todo o que dele comesse teria a vida eterna. Palavras obscuras, mas que tocaram de forma concreta seu coração. Se sua carne seria comida e seu sangue bebida, este era o momento, pois o sangue escorria livremente para o chão, encharcando o solo e a cruz. E sua carne, de tão atingida, já se despedaçava.

Pregavam agora os pés de Jesus em um apoio da cruz. Depois de alguma dificuldade, levantaram a cruz e encaixaram sua haste vertical em um buraco no solo. Jesus pendeu solto, seguro apenas pelos cravos que lhe doíam os nervos. A respiração era difícil e João podia ver o olhar sofrido do mestre. Os olhos esbugalhando e recebendo sangue vertido de sua testa, cravada por espinhos.

Abaixo da cruz, encontravam-se os poucos seguidores de Jesus que o acompanharam até ali. João olhava para o alto, as dores do mestre se tornando as suas dores, o ar faltando-lhe assim como faltava ao crucificado. Buscava em sua memória lembranças de um passado agora infértil e sem luz. Olhava para o madeiro e Jesus ali pregado. A cruz lembrava-lhe uma árvore sem frutos e sem sombra. Seu olhar encontrou o olhar do mestre. Jesus fechou os olhos e os abriu lentamente. Fitou o olhar no olhar de João, o semblante de Jesus pareceu aliviar-se por um breve segundo, e João lembrou-se da visão que tivera no monte, com Pedro e Thiago.

Naquele dia, Jesus fora envolvido por uma grande luz, e Moisés e Elias conversavam com ele. João vira a glória de Jesus, mas não a compreendera. E agora, mais uma das palavras do mestre lhe vinha à memória: "Se o grão de trigo não morre... não pode dar a vida".

E aquele madeiro da cruz, que lhe parecia uma árvore infértil, transfigurou-se em um instante ante seus olhos. Nas feridas de Jesus, João viu a maldade dos homens, no seu sangue, encontrou a dor de amor de seu mestre.

E a cruz se tornou redenção.

E a esperança que lhe fora roubada retornou ao seu coração.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Sobre uma nova vida

Quando a mulher entrou pela porta, os dois se assustaram e alarmados voltaram a se vestir. A mulher que estava deitada com o homem sobre a cama escondeu o rosto sob um lençol e tentou sair. Sendo empurrada pela que entrara, caiu no chão soltando o lençol e revelando seu rosto.

O quarto estava escuro e incensos davam um aroma sensual e estilmulante ao aposento. Os dois se encontravam ali ao menos uma vez por semana, enquanto a esposa saía para visitar os parentes. Aquele dia, no entanto, ela voltara mais cedo.

Saindo do quarto e se colocando à frente de casa, a esposa gritou para os que passavam, sem dó:

- Adúltera! Há aqui uma adúltera! Apedrejem-na!

Alguns homens da lei ouviram os gritos e trataram de fazer cumprir o que lhes era prescrito. Entraram na casa e se dirigindo ao quarto encontraram a mulher chorando em meio a lençóis jogados. O homem se fora, fugindo pela janela.

Ao ser agarrada por um dos homens que a buscavam, a mulher tremeu. Em seu íntimo, sofria antecipadamente as dores que a aguardavam. Sabia o destino que se daria a ela: o apedrejamento até a morte. Destino cruel, mas, pela lei, merecido. Desde que começara o caso sabia que corria esse risco, mas agora que o castigo era tão iminente se arrependia com todas as forças do que fizera. Entregara-se irresponsavelmente a mais um amor que não a completava, que apenas preenchia lacunas em seu peito e que tão logo eram preenchidas, se esvaíam como a neblina diante do sol. Tremeu e chorou. Chorou um pranto contido, silenciado, como de ovelha que segue ao matadouro.

Três homens a seguraram e levaram para fora da casa. Empurravam-na e de vez em quando acertavam-lhe chutes e ponta-pés. A dor que sentia na pele não podia ser tão grande quanto a vergonha pública pela qual passava naquele momento. Tentando esconder o rosto, podia ver muitas pessoas olharem com aprovação para a atitude dos homens que a espancavam. Alguns faziam comentários sobre sua identidade: 'não é a esposa do ferreiro?', 'bem merecido castigo', 'vamos assistir?', 'se meu filho pequeno não estivesse aqui, certamente iria'.

De repente, a mulher se viu envolta de uma pequena multidão. Em frente ao templo, algumas dezenas de pessoas que se reuniam viraram o rosto para ver o que se passava. Os homens seguraram a mulher com força, murmuraram rápidas palavras e, passando por entre a multidão, levaram-na até um homem sentado sobre as escadarias do templo. Apertavam o braço da mulher com força e a sacudiam, de modo que quando a soltaram ela caiu por terra aos pés daquele homem.

Aqueles que a haviam levado até ali perguntaram:

- Rabi, esta mulher acaba de ser apanhada em adultério.

- Sim, e Moisés nos manda na lei que apedrejemos tais mulheres. Que dizes tu? Que devemos fazer?

A mulher, ainda caída no chão, percebia o tom irônico na pergunta. Entendeu o que queriam fazer. Aquele devia ser Jesus, o Nazareno. Um homem que há algum tempo vinha confrontando a doutrina dos fariseus. Um homem ao qual o povo se apegara, pois fazia milagres, curava doentes e dizia palavras que enchiam os corações de esperança.

Esperança. Teria ela alguma esperança naquele momento? As lágrimas sequer escorriam mais em seu rosto, agora sujo e suado, pois nem lágrimas adiantariam para amenizar a dor que sofreria em instantes. A lei de Moisés era clara e sempre era cumprida com rigor pelos israelitas. Já era capaz de sentir sobre a carne as pedras atingindo-lhe o rosto, a barriga, as pernas...

Desesperou-se ao ver que muitos homens, mesmo alguns que estavam na multidão ouvindo Jesus, pegavam em pedras, apenas esperando o aval do Rabi para a execução. Tremeu e encolheu-se como uma presa indefesa. Haveria alguma esperança nas palavras do Rabi? Ela clamava aos céus que sim.

No entanto, Jesus permaneceu sentado e usando o dedo, começou a escrever no chão. Os homens da lei riram diante daquela cena.

- Não podes contradizer Moisés, podes? O que escreves? Por que te abstens de responder?

- Podes porventura nos mandar que apedrejemos a ela? E o amor ao próximo que pregas?

- É falha tua doutrina, Rabi.

A mulher se desconsolava novamente. Por um momento se agarrara ao fio de esperança que aquele homem representava, mas ele se mantinha em silêncio, ignorando os homens que lhe questionavam. Reparou nas palavras que ele escrevia: Miséria. Era como se sentia, uma miserável. Uma mulher repudiada por todos, destinada a morrer vergonhasamente. Não bastasse calar-se, o homem ainda a fazia se confrontar, nos últimos momentos de vida, com a própria miséria.

- Não falas... - recomeçou a falar um dos homens da lei.

Nesse momento, Jesus levantou-se. Olhou para a palavra escrita no chão, olhou para as pedras nas mãos dos que o ouviam anteriormente. Uma breve expressão de tristeza perpassou seu rosto. Então ele disse, apontando para todos. Cada um dos que estava entre os presentes podia afirmar com certeza que em algum momento ele apontara para si. Com voz forte, disse:

- Quem dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a atirar-lhe a pedra.

A mulher gelou ao ouvir que Jesus permitira o apedrejamento. Era só questão de tempo até que a primeira pedra voasse sobre ela, e depois da primeira, todas as outras. Ela ainda não notara no poder que as palvras de Jesus tiveram sobre a multidão. Seu coração estava em prantos e novamente lágrimas irromperam de seus olhos. A dor que sentia em seu coração era imensa, uma angústia e um medo que a faziam repensar toda a vida e desejar ter muito mais tempo para poder acertar as coisas, para poder ter uma vida que valesse ser vivida e não a vida miserável, ainda que confortável e luxuosa, que levara. Viu Jesus inclinar-se novamente sobre a terra e escrever.

Coração. Miséria e coração. 'Eu conheço os coraçãos', ela ouviu a voz de Jesus, dentro de si, clara como o sol de meio-dia em um céu sem nuvens. 'Eu conheço os corações, e são todos como o seu, desejosos de um verdadeiro amor, esquecidos de amar. Eles acusam para que não sejam eles acusados.'

E então ela entendeu. Se alguém atirasse a primeira pedra, seria alvo de comparações e murmurações. Agarrou-se novamente a um fio de esperança. E o pequeno fio de esperança se transformou em corda segura ao ver que os mais velhos começavam a largar as pedras e sair. E, de repente, a mulher viu-se deitada sobre um chão seguro, e a esperança se transformara em certeza. Certeza de uma nova chance. Todos os presentes largaram suas pedras e se retiraram, envergonhados e pensativos.

Sobraram apenas ele e ela. E as lágrimas que saíam de seus olhos já não eram de desespero e angústia, mas de amor e alívio. E ela olhou para o homem à sua frente, aproximou-se dele. Tocou-lhe as sandálias e beijou-lhe os pés, molhando-os com suas lágrimas.

Jesus se levantou e olhou em redor. Perguntou:

- Mulher, onde estão os que te acusavam?

Inclinou-se para levantar a mulher e continuou:

- Ninguém te condenou?

Com voz embargada e uma imensa gratidão que jamais poderia descrever em palavras, a mulher respondeu:

- Ninguém, Senhor. Ninguém me condenou.

Jesus sorriu, e seu sorriso pareceu-lhe o mais belo poema transformado em vida. E Jesus disse as últimas palavras que aquela mulher ouvira naquela vida. Ou foram as primeiras palavras que ela ouviu na nova vida. Pois, naquele momento, Jesus ressuscitava um morto que jazia enterrado há muito. Aquelas palavras enterraram as trevas que jaziam em seu coração e recobraram-lhe a vida e ela ressucitou com Cristo, para uma vida nova.

- Também eu não te condeno, mulher. Vá e não voltes a pecar.

E ela seguiu Jesus. E seu coração, aos poucos, reaprendeu a amar.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Sobre um homem

A rua estava tranquila. Passos e vozes iam e vinham e, como de costume, poucas vezes o som de moedas tilintando sobre a caneca de barro era ouvido. Sentia o mormaço do dia e deitava na rua ao lado de um muro áspero. A terra batida tinha um cheiro forte naquele dia e a algumas centenas de metros deveria haver uma barraca de frutas, pois o cheiro suave vinha em sua direção.

Assim passavam-se seus dias. Deitado na rua, com roupas doadas a muito tempo por um jovem bondoso. Sua caneca à frente, recolhendo moedas que não poucas vezes eram surrupiadas por algum ladrão 'invisível'.

Naquela tarde, rumores de uma visita inesperada e bem-vinda podiam ser ouvidos nas conversas. O homem dos milagres, o homem das palavras belas e do coração bom viria à cidade. Em alguns instantes, a rua passou a ficar mais movimentada. Ouvia muitos passos à sua frente e o movimento rápido e frequente do ar a sua volta indicavam que muitas pessoas passavam às pressas entre as casas. Portas se abriam e fechavam e, de repente, muitas conversas, talhas chocando e sandálias pisando o chão eram ouvidas.

O ar ficou mais abafado em torno do pobre mendigo. Muitas pessoas deveriam estar ali, impedindo a passagem de vento. Confuso e preocupado em ser pisoteado pela multidão que aparentemente se colocava à sua frente, levantou-se e esticou os braços para tocar em alguém. Alguns, ao serem tocados pelo pobre, desviavam-se e murmuravam maldições para o cego.

- Alguém - dizia-lhes -, alguém me diga o que acontece. Por que essa multidão?

- Cala-te, cego. - respondeu-lhe uma voz, e mãos o empurraram. É Jesus, o Nazareno, que vem. E tu não fazes melhor do que deitar-te. Vai-te.

'Jesus, o Nazareno', pensou o cego. 'As conversas que ouvi falavam dele, de sua visita a Jericó. O homem dos milagres, o homem das palavras belas. Eis a minha chance... Eis a minha chance de enxergar... de tirar a maldição que sobre mim caiu quando nasci.'

De um salto, o cego atirou-se sobre a multidão como alguém que se atira sobre um precipício cujo fundo não vê. Estendia as mãos e a plenos pulmões gritava:

- Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim. Tem compaixão de minha miséria e meus pecados. Jesus...

Andava aos tropeços entre a multidão, mas muitos o repeliam, chutando-o e fazendo-lhe ameaças. O cego foi jogado de lado e caiu com um baque ao lado do muro de onde levantara. Percebendo a dificuldade que teria de se aproximar, e sem nem mesmo saber de que lado vinha Jesus, desesperou-se e continuou gritando, ciente de que o barulho da multidão abafava seus gritos por completo.

- Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim.

- Cala-te, diziam os mais próximos. Não percebes que ele não te ouvirá?

Mas o cego continuava gritando, sem cessar. Quando a multidão já se ia, ainda seguindo Jesus que já passara, lágrimas escorreram sob seus olhos. Enxugando o rosto, mas ainda suplicando, dizia, agora bem baixo, quase sussurrando:

- Jesus, ouve-me, tem compaixão de mim. Tem compaixão, Jesus. Jesus...

O som ensurdecedor da multidão parou. Sem perceber, o cego continuou clamando:

- Jesus...

A algumas dezenas de metros, de onde a multidão deveria estar, ouviu uma voz forte e suave, que em alto e bom som disse:

- Chamai-o.

Por alguns segundos nada aconteceu. O mundo escuro, e agora sem som, pois nem mesmo a multidão se movia, pareceu haver ido embora. As lágrimas ainda escorriam em seu rosto, quando o cego Bartimeu ouviu passos próximo a si e mãos que o tocavam e levantavam.

Uma voz doce de mulher chegou-lhe aos ouvidos:

- Coragem, levanta-te. Ele te chama.

As lágrimas irromperam mais forte. Lançou fora a capa que o cobria e, somente com uma manta sobre as pernas, correu na direção da voz que o chamava. Tropeçou em pedras, ameaçou cair, mas continuou correndo. Quando se aproximava, sentiu uma forte presença e sabia que chegara próximo ao homem. Ajoelhou-se subitamente e, sem se importar com a repentina dor nos joelhos pôs as mãos sobre o rosto e chorou de novo.

Uma mão encostou-lhe a cabeça e a voz forte e suave soou novamente:

- Que queres que te faça?

Toda sua vida passou em sua cabeça. Décadas de dor e exclusão. Odiado pelos parentes, tratado como um chagado por Deus, sem condições de trabalhar, sem condições de comer. Sem amigos ou uma família que cuidasse de si. Bartimeu ouviu a pergunta 'Que queres que te faça' e pela primeira vez em anos um lampejo de esperança percorreu-lhe o coração e a alma. Esperança... uma sensação que se mostrou palpável e alegre... Esperança... que lhe recobrou o sentido da vida em um instante.

- Senhor - respondeu com voz embargada -, Senhor, que eu veja!

Tirou a mão do rosto e ergueu a cabeça.

- Vai - disse a voz à sua frente -, a tua fé te salvou.

Ainda de olhos fechados, Bartimeu percebeu uma claridade que batia à porta de seus olhos. Pela primeira vez em muito tempo sorriu. Um sorriso gostoso. Com muita insistência e não acostumado com a luz, abriu os olhos aos poucos.

A primeira figura que eu vi foi aquele homem. A primeira figura, e a mais bela que eu veria em toda minha vida. Um homem estendendo-me a mão, sorrindo, olhos firmes encarando meus olhos débeis e recém-nascidos para a luz. Um homem que me estendia a mão e chamava-me a caminhar consigo. Um homem que seria toda a minha vida e que, a partir daquele dia, me ensinou a caminhar na luz e sair da escuridão. Um homem que mais do que dar luz aos meu olhos, iluminou meu coração.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Sobre Gondrian

Via-se, nos campos de Gondrian, uma figura altiva, determinada. Um viandante, de roupas pretas como de um pistoleiro, mas de espada em bainha, andava entre as árvores esparsas atingidas pelo vento. Cabelos longos e dresgrenhados voavam tornando-o visualmente mais alto e esguio. Em meses não se via um'alma sequer andando por aquelas terras ermas que levam a lugar algum.

As folhas se soltavam dos galhos, voando desordenadamente sobre os olhos e pés de Argus. O rapaz protegia-se da imensa ventania que vinha do leste com o braço dobrado ante o rosto. Andando com dificuldade contra o vento, veloz e furioso, Argus rumava aos campos perdidos de Gondrian.

Rezava a lenda que nesses campos se encontram objetos sagrados. Objetos que poderiam recobrar vida aos enfermos. Os campos porém nunca foram encontrados e todos os que iam até ele ou nunca mais eram achados ou voltavam alucinados e malucos. Argus não se importava. Se achar os objetos sagrados era a única forma de se salvar, arriscaria a sanidade para tal. Se não os encontrasse, tampouco faria diferença morrer demente ou morrer são.

Já se iam dias andando, com escassez de comida e pouquíssima água. Beber das águas dos campos era impossível já que não se podia saber se eram venenosas. Tudo ali era suspeito. Mesmo o ar que se respirava. Argus perdia as forças a cada passo, e a força do vento começava a levá-lo para trás. Árvores se retorciam e balançavam incessantemente. A vista turvava e abrir os olhos tornara-se perigoso, pois poderiam ser acertados por uma pequena pedra voando ao vento.


Passo após passo, Argus começou a sentir o corpo pesar mais e mais até paralisar. Continuava sentindo o vento bater em si, mas era incapaz de se movimentar. Pesava mil toneladas naquele momento. Sentia como se nada pudesse tirá-lo do lugar.

Pelo canto da vista percebeu um vulto a correr entre as árvores. Corria com a leveza de uma sereia em águas calmas, não rápido, mas sem se importar com o forte vento que se opunha a seus movimentos. Argus virou o rosto, mas o vulto se fora. Tentou mover-se novamente, mas isso era impossível. O peso passou-lhe a doer os ombros e as costas. Sentia-se prensado por uma montanha. Olhou para os pés, para certificar-se de que nada o prendia.

Ao voltar a vista para frente, seu olhar se deparou com o vulto que vira, mas agora o vulto estava a sua frente, a pouco mais de dois palmos de distância. O susto de Argus foi enorme, mas, de qualquer forma, ele não podia se mover.

O vulto era um homem com pele lisa e branca - ou seria uma mulher, com feições de homem -, com um imenso manto preto e um capuz sobre a cabeça. O homem - a criatura - tinha mais de dois metros e na distância a que se colocava parecia imponente como um cavaleiro sobre seu cavalo. Argus não sentia mais o vento, mas apenas um mormaço quente a lhe rodear, como se estivesse preso em uma bolha no meio da ventania. De fato, percebeu que o vento, apesar de ainda soprar impetuosamente, não movia as roupas do ser à sua frente. Era como se mesmo o vento o temesse.

Os dois permaneceram calados, olhando-se detidamente.

Um leve sorriso surgiu nos lábios do homem à frente de Argus. Sua boca abriu-se levemente e uma voz rouca , mas fina, saiu de sua garganta, sem que seus lábios se movessem.

- Argus, bravo guerreiro. Não me importo que venha até meus domínios, só me importo que deles saia.

Num piscar de olhos, a criatura não estava mais à sua frente. O vento voltou a bater em seu corpo e um frio repentino tomou conta de si. O peso que lhe prendia ao chão sumiu, fazendo Argus ser empurrado pelo vento, cair e ser arrastado a metros de distância. Num impulso, jogou-se contra o tronco de uma árvore para conter a queda. A ventania aumentara e seu corpo agora era esmagado contra a árvore. Permaneceu ali por horas, sem forças para romper a imobilidade em que se encontrava. E por horas a ventania continuou, sem dar tréguas. E o corpo de Argus adormeceu, e sonhou sonhos estranhos.

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Um continho sem começo nem fim, só pra não perder o costume de escrever.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Sobre acostumar-me

Eu me acostumei a não pedir perdão e esperar que o tempo cubra a ferida, mesmo sabendo que ela não foi curada.

Eu me acostumei a não ser sincero, e assim esqueci o que é verdade em mim.

Eu me acostumei a falar de mais, e agora não consigo ouvir nem mesmo o meu coração.

Eu me acostumei a julgar atitudes e palavras, deixei de fazer grandes amizades assim.

Eu me acostumei a deixar a distância enterrar amizades, mesmo sabendo que seria muito mais bonito estar junto.

Eu me acostumei a não dizer 'te amo', e agora não faço nem um simples elogio.

Eu me acostumei a contar erros de outros sem corrigi-los, e assim dei início a muitas fofocas.

Eu me acostumei a deixar pra depois, e agora o ontem está cheio de espaços vazios.

Eu me acostumei a não ter disciplina, para não ser quadrado, e assim deixei de aproveitar com sabedoria momentos importantes.

Eu me acostumei a me acostumar, e assim deixei de me inquietar com a injustiça e a miséria.

Eu me acostumei a dizer palavras bonitas, mas esqueci de vivê-las.

Eu me acostumei a fazer muitas novas amizades, mas me esqueci de cultivar as velhas, que me ajudaram a ser quem eu sou.

Eu me acostumei a ver o sofrimento e a me compadecer, mas sem agir, e assim me tornei cúmplice do mal que não cometi.

Eu me acostumei a ser bom, sem querer ser melhor, e acabei deixando muito a desejar.

Eu me acostumei a fazer o suficiente, e deixei de dar o melhor de mim.

Eu me acostumei a imitar e reproduzir, e deixei de criar, mudar e ousar...

E tudo ficou mais cinza...

E as páginas de minha história ficaram manchadas pelo comodismo inerte.

Sobre falta

no deserto
da ausência

na esperança
da presença

que vivifique
que crie vida

nas pedras
inférteis

que aqui
há,