quinta-feira, 10 de maio de 2012

À margem

As ruas ainda vazias, apesar do sol que já despontava a algumas horas no céu, prediziam a solidão ativa no coração de João. Caminhava entre casas pequenas, coloridas diversamente e com janelas de madeira branca que tomavam grande parte da parede. Todas as janelas estavam fechadas, impedindo que a claridade acordasse pessoas ainda entregues ao sono. Alguns paralelepípedos soltos exigiam atenção no andar e João seguia cabisbaixo para não tropeçar e para não encarar o caminho de frente. Seguia arrastando as sandálias friccionando-as contra as areias que o vento trazia da praia.

O clima ainda estava ameno e a maré começara a subir quando João chegou à praia e pôde visualizar alguns pescadores a trabalhar. Puxavam as redes que lançaram à noite, enchiam a embarcação de alimento para suas mesas. A cena era poética, bela. O mar, o homem, o peixe. Grande mistério, trabalho, sustento. João pensou que tudo era providência. Ou que talvez o homem tivesse aprendido a se adequar tão poderosamente ao mundo à sua volta que tudo parecia existir para lhe servir, para ser conquistado. De fato, o homem conquistara cada ambiente: a terra, o mar, os céus. Não havia lugar onde não pudesse chegar, não parecia haver fronteiras na natureza que impedissem a sua passagem, a sua chegada, e a subjugação de toda vida à sua vontade. Logo, também o espaço estaria tomado pela soberania da espécie humana. João pensou tudo isso com um pouco de admiração e muito de desprezo.

Tirou as sandálias e continuou seu caminho pela praia, sentindo a areia fina e fria entre os dedos calejados. Não tinha direção, nem compromissos para o dia. Esperava poder ir a qualquer lugar pelo tempo que fosse necessário para chegar lá. Deixou-se levar, olhando fixamente para o alto mar, maravilhando-se com a imensidão quase infinita que estava à sua frente. “Mexe comigo essa coisa de infinito”, pensou. “Só consigo enxergar até ali, mas sei que ele vai mais além, e mais além, e mais além...”. Não sabia dizer o que o encantava mais: o infinito do universo ou o fato de a vida parecer tão importante apesar de tão pequena. Olhava o horizonte e via o encontro entre céu e mar. Duas realidades distintas, um tão mais infinito que o outro, ambos belos e inspiradores. E do outro lado do horizonte, em sua pequenez, olhos capazes de se admirarem. “São grandes e belos, o céu e o mar, se há quem os observe, ou são plenos em si?”.

Os pensamentos corriam, assim, soltos. Sem a pretensão de fazerem sentido ou de conduzirem a quaisquer conclusões. Era quase como uma limpeza mental. Fazia-lhe bem.

Já passada a manhã, o humor o conduziu para dentro da pequena cidade. Quis ver pessoas, olhar em seus olhos, imaginar seus percursos. Sem deter-se em lugar algum, percorreu ruas, olhou vitrines e cumprimentou quem encontrava.

O dia passava rápido apesar da aparente ociosidade de João. Chegou a um dos limites da cidade, de onde podia ver o mar do alto, bem alto. Estava sobre uma pequena chapada, arborizada e com um parapeito que o impedia de chegar próximo à borda. João pousou o braço sobre a madeira do parapeito e inclinou o corpo para sentir a brisa e apreciar mais um pouco a visão.

Caía a tarde, as primeiras estrelas começavam a aparecer e o sol, magnificamente belo, descia rapidamente às costas de João. Hoje, ele decidiu observar não o pôr-do-sol, mas o anoitecer. Via o azul tornar-se negro e a escuridão tomar conta de uma paisagem a pouco tão viva e repleta de luz. Ficou ali até que pudesse ver apenas um imenso abismo negro abaixo da chapada. Imóvel... absorto... Fitou a escuridão, desafiando-a a penetrar seu coração com toda a força. Percebeu-se capaz de vencê-la, percebeu-se forte mesmo em sua solidão. Talvez a própria solidão o tenha enriquecido, ajudado a conhecer-se e, portanto, o tornado senhor de si.

Decidiu voltar para casa, mas antes de sair, reparou que a poucos passos de onde estava havia uma escada, mal cuidada, a princípio perigosa, que descia pela borda da chapada até... A noite o impedia de ver. Enxergava muito pouco e a escada desaparecia em meio ao nada. “Para onde?”, pensou.

Numa noite escura, tendo seguido durante todo o dia para o limite de cidade já conhecida, João, às bordas de um abismo e às margens de si, deparou-se com uma escada que não sabia para onde ia. Desceu.