quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Sobre pontes

“Quando a vida dá muitas voltas, a gente pode ficar tonto”, pensou. Olhava para os olhos de apetite da garota e se perguntava se deveria dizer todas as coisas que queria. Ela complicava seus pensamentos, bagunçava tudo dentro dele, e ele gostava disso. Ela o bagunçava de uma forma que, estranhamente, o colocava no lugar, e ele definitivamente gostava disso.

- Quer dizer que a vida dá muitas voltas e pode ser que um dia a gente volte a ficar junto?

- Foi o que acabei de dizer – ela disse, mordendo os lábios e torcendo a boca como quem não sabe se agradou.

E não agradou, mas o seu jeito, seu olhar, e a esperança... dizer o que ela disse era sentenciar que uma porta continuaria aberta. Havia a esperança de... um dia. Não seriam apenas amigos, seriam amigos que um dia, se a vida der voltas, podem voltar a ficar juntos. Isso lhe parecia suficiente, embora fosse difícil. Preferia um ‘não’ curto e grosso e seguir em frente a se ver agarrado a uma possibilidade remota. Mas nem tudo é como a gente quer, nem tudo é como a gente quer.

- Está bem. Se você pensa que assim é melhor, então...

- Eu penso que assim é o único jeito – ela interrompeu, fechando os olhos e abaixando a cabeça. – Por que agora não dá. Agora não.

Deixaram o silêncio tomar conta da conversa. Um rebuliço de sensações e lembranças invadiu seus corações. Não podiam trocar olhares e não podiam trocar palavra. Tudo estava terminado, sem ao menos ter começado direito. Padeceram silenciados, deixando que a distância crescesse naturalmente entre eles. Não queriam participar do processo de separação, então apenas deixaram ruírem sozinhas as pedras da ponte que haviam construído juntos. E elas foram ruindo, uma a uma, caindo pesadamente sobre o rio do sentimento, fazendo jorrar gotas e gotas de águas frias que gelavam a alma tão logo tocavam o chão. Os minutos se passaram e, no silêncio, tudo se desfez. E a ponte caiu por completo assim que a garota rompeu a solenidade do silêncio, dando um frio ‘boa noite’ e deixando a cadeira arrastar ruidosamente atrás de si para sair.

Ele permaneceu quieto, olhando para o nada, sem responder, desejando que as próximas horas apenas voassem com o vento. Ficou sentado por muitos minutos, tentando absorver toda a conversa, imaginando o quanto poderia ter falado, e, mais importante, o quanto deveria ter calado, escutado e compreendido.

Por fim, levantou-se e seguiu seu rumo para casa, ainda pensativo, pés pesados. No caminho, uma ponte destruída lhe chamou a atenção. Sob a ponte, por onde já não se podia andar, pedras meio afundadas, permaneciam meio para fora. “Algum aventureiro poderia tentar passar por elas, uma por uma, saltando, até chegar ao outro lado”, sorriu, sentindo a esperança brotar e reacender-lhe o brilho dos olhos.

Foi quando reparou que, um pouco mais adiante, havia uma outra ponte construída para cumprir o mesmo papel daquela que ruíra.

E sobre a ponte havia uma garota.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Votos de Natal

Diz que havia magia na noite de Natal. E o silêncio reinava. E havia paz nos corações. Diz que o Deus-Menino veio fazer morada em nosso meio e arrebentou os laços da soberba, com seu humilde nascimento. Diz também que a natureza se regozijou em festa. Bois, leões, cabras, ovelhas, todos cantavam, ao seu modo, a eternidade de Deus que se fez presença no tempo. Diz que, quando ele nasceu, pairou sobre a Terra um clima de amor e paz, um cheiro de esperança e fé e que, na gruta em Belém, Maria e José sorriam e os reis magos, admirados, adoravam a divindade escondida. Os pastores, por sua vez, contavam e cantavam o canto dos anjos de Glórias ao Deus do Céu.

Dizem tudo isso, e dizem muito mais.

Eu, aqui, tenho minhas dúvidas. Deus não é mágico para fazer magia. Ninguém sabia ainda que o menino nascera, que paz haveria de ter nos corações? Ou que soberba seria desfeita, assim, tão de repente? Demora-se tanto para mudar um coração. Deus bem o sabe. Além disso, animais não foram feitos para cantar. Nem mesmo entender o que se passava eles entendiam. Esperança e fé não têm cheiro, e paz e amor não dá em clima, como chuva de verão que vem e passa. Jesus passou tantos anos falando dessa paz e desse amor, e muito ele teve que falar e fazer para alguém entender um pouco que fosse.

De Maria, José, os reis e os pastores eu até posso crer, e do silêncio profundo que pairou sobre a gruta também. Nesse silêncio eu acredito. Esse silêncio de contemplação do mistério de quem olha sem entender. Silêncio de Maria, de guardar as coisas no coração e medita-las anos a fio, como merecem ser meditadas as coisas grandes, ou melhor, as coisas importantes, que podem ser grandes, ou não. Esse silêncio de desfrutar, de saborear o momento presente sabendo que se está onde se deve estar e que olhar e esperar é a única coisa a se fazer por agora. Esse silêncio que não é passividade, mas pacificação do coração. Que não é fim, mas é processo de tornar tudo mais claro, ainda que continue sempre tão obscuro, pois Deus e seus desígnios não podem nunca ser plenamente compreendidos. Silêncio de aceitação de que não vamos entender. Silêncio de espera e esperança de que mesmo não entendendo, sabemos que nos planos de Deus cada coisa tem o seu lugar e que na hora necessária, com muito zelo e carinho dEle, tudo tomará o seu lugar. Aquele silêncio de aluno que toma nota, que aprende e que olha atentamente para não perder nenhum detalhe da lição. Silêncio de quem aprende a lição mais importante de todas: desfazer-se de si para refazer o outro. Ou, em uma palavra: amar. Amar, que é verbo, ação, movimento.

E daí, desse silêncio, brotou então na gruta a paz, a esperança, o amor, a fé, o gozo e os sorrisos. Ah! Que belos sorrisos deveriam ser. Os mais belos. Os mais belos.

Ó Árvore do Silêncio, enraizada no solo do coração, nessa noite de Natal, permita-nos subir em seu tronco e apanhar em sua copa exuberante teus frutos saborosos, teus preciosos frutos. Permita que nos alimentemos de ti por um minuto que seja, ou mais. E então, e só então, poderemos desvendar, um pouco que seja, o grande mistério do Natal.

Feliz Silêncio! Feliz Natal!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sobre calma

Loucos, ele diria, loucos.

Rodrigo desceu correndo as escadas do prédio, sem paciência para esperar o elevador. Saiu pela portaria esbarrando no síndico sem pedir desculpas. Entrou em seu carro e começou a dirigir nervosamente para lugar algum. Pensava e repensava. Ponderava todas as coisas que vira e ouvira. Não conseguia ordenar os pensamentos, não conseguia retomar a calma e tranqüilidade que lhe eram tão particulares. Respirava e inspirava profundamente na esperança de se acalmar, mas nada resolvia.

Se ele não podia se acalmar sozinho, precisaria de algo que lhe ajudasse. Reconduziu o carro para o Parque da Cidade, onde poderia buscar um local isolado e silenciado, para isolar-se e silenciar-se. Silenciar-se, exterior e interiormente, era do que precisava. Saíra correndo de casa para não tomar nenhuma atitude drástica, pois sabia que nas horas de nervosismo e frustração era capaz de fazer grandes besteiras. Nesses momentos, era preciso retomar a paz do coração antes de fazer qualquer coisa.

Chegou ao parque e estacionou o carro embaixo de uma mangueira carregada de mangas meio verdes, meio maduras. O céu nublado prenunciava uma possível chuva de verão, rápida e passageira. Desceu do carro sem o guarda-chuva esperando que de fato chovesse e ele pudesse refrescar o corpo e as ideias no silêncio sagrado das águas caindo. Poucas pessoas caminhavam naquele dia, Brasília já estava de férias e muitos já haviam viajado para encontrar suas famílias em outras cidades ou apenas passar as festas de fim de ano em outro lugar. Rodrigo observava a pouca movimentação e caminhava lentamente com pensamentos soltos ao vento. Passou por algumas senhoras que conversavam alto; um senhor de idade com físico invejável e fôlego de jovem; crianças pedalando velozmente e garotas conversando sobre qualquer futilidade. A vida seguia normalmente. O mundo era indiferente à sua angústia.

“Louco”, pensou, “talvez eu seja o louco”. Continuou procurando o lugar isolado que desejava. Encontrou-o perto do laguinho, num pequeno bosque com árvores altas. Desejou subir em uma delas, e foi o que fez. Como criança que descobre o mundo vivendo aventuras sempre novas, subiu de galho em galho até uma altura de seis ou sete metros, não sabia ao certo. Lembrou-se da infância, do quanto o mundo era simples, do quanto a vida era boa e sem complicações. Deixou-se deitar em um galho maior e arriscou encostar a cabeça e fechar os olhos. Uma pequena vertigem e tontura o atingiram, mas ele sabia que o mundo só girava em sua cabeça. E como o mundo girava em sua cabeça! Girava rápido.

Conteve-se. Não abriu os olhos e, enquanto a vertigem crescia e crescia, começou a cantar uma música para acalmar-se. Cantava baixo somente para si e ouvia sua voz rouca e engasgada saindo da garganta guturalmente. A canção embalou um sono, o sono transformou-se em sonho e no sonho ele voava, e voando encontrava as nuvens, que não eram feitas de algodão, mas de uma névoa rala e fresca que se dissolvia tão logo ele passava a mão sobre ela. Quando respirava, o ar gelado incendiava-lhe todo o pulmão e do pulmão todo o sangue. Sentia-se interiormente vivo. Sentia seu interior e percebia que era muito mais do que aquilo que lhe acontecia exteriormente.

E, nunca soube como, acordou em pé, na porta de sua casa, de coração aberto e aliviado, pronto para refazer os laços que se perderam.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Sobre mudanças

"Às favas esse bando de idiotas pensadores. Pensam que podem determinar os rumos de minha vida, mas esquecem que da minha vida cuido eu", pensou raivosamente Gabriela. Enquanto todos a olhavam atônitos, pegou sua bolsa e sua pasta, aprumou-se no salto e saiu sem dar uma última satisfação que fosse. A noite havia sido cansativa, acordar cedo fora cruel e chegar na reunião para encontrar os colegas de trabalho julgando suas decisões e apontando seus erros foi a gota d'água. Já não sabia se queria continuar naquele emprego e, agora, com esse último acontecimento, decidiu definitivamente por sair de cena.

E saiu. E tudo passou a ser novo, como ela jamais imaginara. E, sem saber o que fazer ou para onde ir, começou a reinventar-se.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Sobre palavras

Coisa estranha essa de escrever.
Às vezes o que está em mim transborda pelas palavras.
Às vezes sinto transbordar, mas palavras faltam.
Às vezes me transbordo, sem palavras.
Às vezes nem palavras bastam.
Às vezes, poucas palavras.
Às vezes, muito poucas.
Às vezes, silencio.
Silêncio.
E só.

Sobre caminhar

Abriu os olhos. O corpo doído e cansado clamou por permanecer na cama por mais longos minutos, horas. Lutou contra a vontade do corpo e se levantou, vencendo-se a si mesmo já no primeiro instante do dia. Ao se levantar, percebeu-se em um lugar diferente, misterioso.

Era noite e o vento uivava forte, congelando-lhe a face, o corpo e o pensamento. O terreno era pedregoso, com pequenos declives que atrapalhavam o andar e deixavam-lhe inseguro em seguir em frente. Vez ou outra, vislumbrava uma árvore ou uma grande pedra em sua frente e desviava o caminho. Caminhar olhando para frente era perigoso, pois podia tropeçar. Caminhar olhando para o chão dava-lhe o risco de acertar a cabeça em algum lugar.

Seguia em frente, assim, olhando para o chão e para frente, para o chão e para frente, cuidadosa e lentamente. À medida em que avançava, o dia começou a raiar, alaranjado e belo, e o vento impetuoso se transformou em brisa leve e sossegada.

Percebeu-se amadurecido em seu caminhar. Já não era tão inseguro e o terreno, de tanto seguir em frente, tornou-se mais leve e plano, e macio e delicado. Caminhava a passos firmes, fitando o horizonte distante que se aproximava a cada monte que começava a subir, para então se distanciar imenso, infindo no longínquo distar que, ao subir o monte, agora se revelava. E o horizonte se punha longe, até ser de novo alcançado. E novamente, longe... E caminhar, estranhamente, dava-lhe cada vez mais forças de caminhar. E o ar que respirava era puro e revigorante.

Caminhou assim por mais muitos dias. O incansável, que se cansava deveras, mas que continuava a caminhar.

E assim seguiu, até que a leve brisa que por dias o aconchegava, transformou-se novamente em vento forte, mas agora quente e violento. Acertando-lhe com grãos de areias que vinham do deserto à frente. E a grama transformou-se em areia. E o sol rachava-lhe a cabeça e lhe ardia o corpo inteiro. E olhar pra frente era impossível devido ao vento. E caminhar era cansativo e doloroso. E a vontade de desistir e se deixar jogado ali mesmo era terrível e angustiante. E o pensamento da morte lhe assaltava a cada instante. E no horizonte só se via areia e mais areia. E à noite, o frio era congelante e sofrível e desesperador.

E a sede era tamanha. E a sede era tamanha!

E a presença que sempre sentira ao seu lado, fazia-se ausente. Mas a Esperança o impelia. E a paz que já sentira, e os caminhos que percorrera, lembravam-lhe que vale a pena caminhar. E o caminheiro caminhou, com pernas doídas, mas caminhou.

E, seguindo sempre em frente, depois de longo sofrimento e ausência, sentiu que o ar trazia novos ventos. E aquilo o acalmou. Era novamente brisa. E agora fresca, e úmida. E o som do marulhar atingiu seus ouvidos, dando-lhe alegria. Alegria! E ele sorria. E caminhar era novamente prazeroso. E, ao subir um último monte, avistou o oceano, imenso, majestoso, grandioso. E correu ao seu encontro. E nele entrou, e dele retirou novas forças. E descansou suas pernas. E encontrou um pequeno bote, onde entrou. Ergueu velas e se deixou guiar.

O vento, que lhe acompanhava desde o início, lhe impeliu para águas profundas. O sol era suave, as noites eram amenas. O mar era calmo, sereno. E o horizonte nunca se aproximava. E a terra ficou para trás, muito para trás, até se perder de vista e um pouco mais, e mais um pouco.

E para todo o lado era apenas o mar, e o horizonte e o vento a lhe levar.