segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Sobre pintores, cores e quadros


É assim a vida: as pessoas vêm, as pessoas vão; às vezes ficam pra sempre (gostaria que muitos fossem assim!). De qualquer forma, invariavelmente (ou quase sempre), deixam um pouquinho de si com a gente, e levam um pouquinho de nós com elas.

Ontem conversava com uns amigos. Um deles disse não acreditar em alma gêmea, e a outra disse que nós já somos completos e falar em alma gêmea faz parecer que somos só metade. Definitivamente não somos metade, eu, pelo menos, sou bem inteirinho. E também não acho que tenhamos uma alma gêmea, seja ela metade, inteira, ou só parte...

Acho que somos interinhos. Auto-suficientes, então? Bem, só se você quiser. Mas eu prefiro dizer que somos um pintor, e nossa vida é um quadro. Posso pintar as maravilhas que eu quiser, mas (há um mas; sempre há) só temos uma cor em nossa humilde aquarela. Como pintar um belo quadro com uma cor apenas?

Do resto, já deu pra entender. Se eu quiser ser auto-suficiente, vou pintar um quadro monótono, monocolor, homogêneo... Mas bonito mesmo é aquele quadro bem colorido, em que diversas cores se complementam, se harmonizam, se completam e formam uma grandiosa paisagem, ou um lindo animal, quem sabe um céu cheio de estrelas. É o milagre dos relacionamentos: cada um deixando uma pincelada no quadro do outro. Umas pinceladas são grossas, outras finas, umas ocupam grande parte do quadro da vida, outras são apenas um ponto. As que são apenas um ponto podem ser irrelevantes, ou podem ser AQUELE ponto que dá um QUÊ a mais e faz toda a diferença.

Eu tenho a graça de poder dizer que meu quadro é bem colorido. Cheio de cores que cruzam, entrecruzam, param aqui, continuam ali. Não sei que pintura vai dar, se paisagem ou retrato, se obra expressionista ou barroca. Tampouco acho que isso importe.

Também tenho a honra de anunciar: deixo minha marca em vários quadros por aí. Minha cor tá um pouquinho aí, um pouquinho ali, bastante acolá... Espero estar contribuindo para belos quadros.

Quanto à história da alma gêmea, certamente, a cor da minha aquarela combina mais com alguma cor que anda por aí. Sabe aquele lance de cores complementares? Ou aquela bela harmonia entre o azul e o laranja no ocaso?

Esse é o quadro de nossas vidas... E se quisermos viajar um pouquinho mais, podemos pensar que além de nossos quadros, somos responsáveis também por pintar um quadro maior ainda, comunitário, que todos pintam: tipo a história do mundo. Que contribuição eu dou a esse quadro? Que traços eu faço, e com que frequência eu atuo?

É. Cores, cores, muitas cores. Como num mosaico. É assim que as pessoas vêm e vão. Deixando seus traços e suas tintas. Agora que está avisado, tome mais cuidado. Não deixe de pintar no quadro dos outros, mas preste atenção naquilo que pinta. Não queira deixar um borrão...

Quadros, quadros, muitos quadros. Espero que o meu termine como uma grande obra de arte, exposto no mais importante ateliê da vida.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sobre uma pedras de gelo

O vento gélido da noite atinge o rosto desprotegido de João. Ele caminha lentamente, mãos nos bolsos enormes do casaco de frio, indo para lugar algum. Pensando em como deveriam ter sido os últimos dias - que pra variar foram bem diferentes do que o esperado -, João vai chutando as pequenas pedras de gelo que ainda se encontram no chão, após a forte geada que atingiu a cidade, horas antes.

Os carros começam a sair novamente de suas garagens. A chuva foi como um pitstop para a correria diária da cidade, e agora é hora de voltar a esquentar os motores. Mas João não sente necessidade de retomar o ritmo acelerado em que estava. Decidiu apenas caminhar algumas horas, prestando atenção nas luzes da cidade, no barulho dos carros, na lua minguante que fracamente iluminava o firmamento. A noite o encantava, sempre o encantara, mas havia muito tempo que a correria do dia-a-dia o impedia de contemplar, de vivenciar o espetáculo do céu escuro, de olhar para o céu sabendo que o sol estava do outro lado (essa ideia o atraía inexplicavelmente). João caminha, olhando o profundo buraco escuro que contém as estrelas. As luzes da cidade impedem o brilho intenso das estrelas, mas, ainda assim, tudo é fascinante.

As últimas semanas foram cansativas para João. O rapaz se viu envolto por um turbilhão de acontecimentos em sua casa, seu trabalho e seus amigos. Estranhamente, tudo acontecera ao mesmo tempo: a grave doença da mãe, o término do namoro, a crise financeira da empresa e o consequente corte de gastos... Sem contar o afastamento involuntário que teve com os amigos, por falta de tempo e excesso de preocupação. Parecia que uma parte do mundo decidira desabar, uma parte pequena (porque ele sabia que o mundo era muito mais do que sua vida), mas desabara todo em suas costas. Passara os últimos dias com uma sensação de perda e desamparo. Não sabia para onde ir, com quem conversar. Tudo era solidão e cansaço.

Então, mais cedo, nesta noite, durante a torrente que - mais tarde ele saberá - inundou metade da cidade e desabrigou centenas de pessoas, João parou para pensar que talvez as coisas não fossem tão ruim assim. Não porque achou que seus problemas, no fundo, são pequenos; tampouco por ter imaginado que "no fim tudo dá certo".

João apenas percebeu que a vida não era pra ser um eterno ganhar ou perder, ou um correr atrás do ouro, uma busca a qualquer custo, consciente ou não, da felicidade. Percebeu também que estava triste porque as coisas não iam como deveriam estar indo, e percebeu que quem ditara como as coisas deveriam ir tinha sido ele mesmo. E que portanto a sua tristeza advinha da sua incapacidade de saber prever o futuro.

Não que o futuro não dependa dele. Depende e muito. Mas não só dele. E neste "não só" é que João reflete agora, iluminado pelo farol dos carros que passam vez ou outra e tendo como abrigo apenas a escuridão do céu.

Ele pensa que nada fez de errado para que as coisas não saíssem como desejara, mas que no fim, como nem tudo depende dele, as coisas não saíram como o esperado. A dúvida é: o que fazer agora que depositara expectativas, esperanças, a própria felicidade em algo que não aconteceu? Bem, pensa ele, simplesmente não depositar mais a FELICIDADE em coisas incertas. Então, ele não deve mais nutrir esperanças? Não é bem assim. Só não deve depender dela, por que, em última análise, que poder ele tem sobre as coisas e que discernimento tem para poder dizer: isto me fará bem e é bom que aconteça?

Como buscar a felicidade então? Talvez, aproveitando um pouco o momento, não depender do futuro para ser feliz, não se prender ao passado, viver o presente! Buscando, é claro, construir um futuro sólido, na medida do possível, e vivendo o presente dando maior importância ao que realmente tem de mais importante: a presença. "Quem entenderá isso, se não aquele que sabe do que se passa aqui dentro", pensa.

João chuta mais uma pedra de gelo. Agora elas já derreteram bastante e chutá-las não é mais tão agradável. Ele respira o ar frio e admira o céu. Olha nos olhos da estrela mais brilhante e deseja eternizar cada segundo.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Sobre um palhaço


Você já viu um palhaço triste? Colocando uma trouxa de roupas nas costas e saindo em direção ao horizonte? Que dor! Você já viu um palhaço chorar os amores perdidos? Você já sentiu a tristeza amarga de uma noite forçosa, de um esmagar dos sentimentos para que ria a plateia? Que ria a plateia! E aplauda a dor escondida! Você já se perdeu, como se perde um cão, vira-lata, em busca de um lar que não tem? É assim que se sente o palhaço, perdido, sem lar. Que angústia! Você já colou na prova por temer não passar de ano? Pois não se pode colar na vida. E o palhaço o sente por não poder dar um jeitinho, arrumar as coisas sem partir, fingindo que pode. É por isso que naquele dia quis partir. Não pôde mais fingir. As risadas transformaram-se em sons excruciantes, agulhas afiadas. Então ele apenas se foi, apenas quis voltar, não se sabe pra onde.

Sobre uma situação

Maria se voltou para olhar. Mais uma vez ele chegava bêbado em casa. Aonde tudo aquilo iria parar? - ela se perguntava.

Extraindo as forças de seu coração, foi até o homem e lhe bateu. A mão de Maria ardeu encontrando o rosto de João. João riu e depois chorou. As gargalhadas lacrimejantes doíam-lhe no peito mais que o tapa da mulher.

Os dois se sentaram, frente-a-frente, rosto-a-rosto. Olharam-se e se perguntaram porque? Mais um dia se ia e tudo era apenas igual. Mas queriam mais, mereciam mais... sabiam disso, mas não sabiam como sair de onde estavam.

E apenas choraram, mais uma noite, sem saber... E o outro dia começou, e nada mudou. Maria apenas esperava... esperançosa, paciente... que um anjo os fosse salvar.

E no silêncio da noite, cobrindo-se do frio com um ralo lençol velho e furado, chorava calada.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Sobre uma visita ao hospício

Entraram na sala de espera, ansiosos por mais uma aula de campo. As aulas experimentais eram sempre as mais empolgantes, mesmo sendo as que mais deixavam trabalho para casa. O pátio interno podia ser visto através de uma porta de vidro. No pátio, vários loucos – doidos, lunáticos, ou como preferir – estavam em seu horário de descanso. Esse era também o horário de visita, o momento em que os estudantes entrariam em contato com o mundo interior de cada ser humano ali presente. Dez alunos, com jalecos brancos e pranchetas em mãos, esperavam a conferência dos nomes e crachás para poderem entrar.

- Muito bem, só faltam dois – disse a enfermeira-chefe, olhando para um casal de namorados. O casal, aí, não pretende entrar hoje?

Camila olhava absorta para o pátio interno. Sempre se interessara por psiquiatria pelo fato de ter casos de doentes mentais na família. Numa mistura de interesse acadêmico e tristeza melancólica, mantinha os olhos fitos naqueles homens e mulheres que um dia haviam perdido o discernimento do certo e do errado, do real e do imaginário, do verdadeiro e do falso. A cada dia que visitava o hospital psiquiátrico, retornava para casa com seqüelas profundas no pensamento, que a faziam recordar, durante toda a noite, de sua infância vivida ao lado da mãe doente.

A maioria dos pacientes andava aleatoriamente pelo espaçoso ambiente do pátio. Alguns corriam, outros apenas permaneciam sentados. Quase todos falavam, provavelmente frases soltas e incompreensíveis. Camila observava-os atentamente ao lado de Anderson. Vez ou outra, apertava a mão do namorado como que para se sentir protegida das lembranças que assaltavam sua memória. A mãe doente doía-lhe no peito ainda hoje.

Acordou dos devaneios quando um colega de classe tocou-lhe o ombro.

- Vamos, Camila. Só faltam vocês dois.

Camila e Anderson foram até a enfermeira-chefe, deram seus nomes e receberam os crachás. Antes que voltassem à fila de estudantes, a enfermeira advertiu-os:

- Se ver essas pessoas em tal estado assusta vocês, façam-se um favor: não conversem muito com eles, não procurem intimidade. O sofrimento será menor assim. A cabeça deles não funciona como a nossa. Eles não precisam do que nós precisamos, só precisam viver seus últimos dias, talvez anos, podendo acreditar ser quem pensam que são, acreditar que vivem no mundo em que pensam viver. Eles são apenas seu objeto de estudo, lembrem-se disso. Não se envolvam com suas cabeças complicadas.

Ditas essas palavras, os alunos entraram no pátio interno e foram recebidos por uma outra enfermeira que lhes mostraria o local e falaria um pouco sobre alguns pacientes. Enquanto a mulher falava, Camila não podia parar de observar aqueles homens e mulheres que andavam de um lado para outro sem saber onde estavam. Uma mulher dançava como bailarina, e de vez em quando parava para receber aplausos que vinham de algum lugar de dentro de sua cabeça; um jovem corria atrás de outros pacientes com suas partes íntimas expostas, dizendo: “olha o xixi, olha o xixi, olha o xixi”. Camila pensou que se não fosse muito triste, talvez fosse até cômico.

De todos, um em especial lhe chamou a atenção. Em meio a tanta algazarra e tanta loucura completamente desorientada, um homem se mantinha sereno, sentado no sofá, lendo um livro. Não fosse pela roupa que diferenciava empregados e pacientes, a garota juraria que aquele homem não fazia parte do número de loucos. Ela se desviou dos alunos e aproximou-se do homem. Algo nele lhe prendia a atenção e lhe atraía. O homem virou o rosto de súbito, não viu a garota, mas o grupo de estudantes. Levantou-se calmamente, depôs o livro sobre o sofá e encaminhou-se até os alunos. A enfermeira ainda apresentava os aposentos quando o homem a interrompeu:

- Bons dias, nobres cavalheiros e belas damas. Sejam muito bem-vindos ao meu reino, que por ora também é vosso. Por ora apenas, por favor, não vos acostumeis.
Parou por um instante, observando os que cumprimentava, e, apontando para um dos alunos, continuou:

- Ora, se não é meu eterno amigo Guilde... Guilderei... Guilderainestains... Ora, me desculpe, nunca soube pronunciar seu digníssimo nome, caro amigo. Podes me dizer a que devo a honra de tão ilustres presenças? Mais nobres visitas eu não poderia esperar.

O estudante, imaginando que deveria corresponder aos cumprimentos e procurando fazer de sua fala pomposa e igualmente sem sentido, respondeu:

- Ilustre presença é a sua, amigão... digo, caro companheiro e nobre cavalheiro. Tu sabes – parou por um minuto para formular a frase, enquanto seus colegas riam – tu sabes que este humilde amigo que a ti te apresenta não vale mais que um vintém furado comparado à tua excelentíssima pessoa.

- Ora - animou-se o louco –, tão nobre cavalheiro se dignou rebaixar para me exaltar. É fato que pouco ou nada vales, Guilder... nobre cavalheiro. Em verdade, se eu pudesse pagar para retirarem de minha janela o galo que toda manhã me acorda, despertando-me de divinos sonhos com Ofélia, meio reino entregaria para tal, e tanto mais o faria para que lhe tirassem de minha presença, covarde homem.

Os estudantes ficaram calados, alguns esboçaram um sorriso, segurando uma gargalhada que tentava sair de suas gargantas. A enfermeira que os acompanhava tomou a frente e lhes disse:

- Este é Eduardo Nóbrega. Antes de vir para cá era professor de literatura. Muito culto e estudado, depois da morte da esposa entrou em depressão e passou a acreditar que era um personagem saído das peças de Shakespeare.

- Ora nobre senhora, amada mãe, por quem tanta estima guardo, não me zombe na frente dos convidados. Este é sim Hamlet, príncipe da Dinamarca, que vos fala – e virando-se apenas para os estudantes, como que para evitar que fosse ouvido pela enfermeira, completou: Minha mãe não está bem, desde que seu amante se foi para a Noruega com uma meretriz. Ora, como podia esperar juras de amor eterno de um assassino que ultraja o nome de seu próprio irmão para ter o reinado e sua esposa. Vê-se que somente os porcos crêem nos porcos sabendo o que são. Minha mãe não é melhor que ele... mas pensando bem, por que me julgo capaz de julgar, tão desprezado e desprezível que estou?

E voltando a dizer para todos, continuou:

- De fato, ando prostrado, e falta-me a luz que outrora brilhou em meu rosto. Mas isso não por ter perdido a querida Ofélia, que, estranhamente, não encontro a bastante tempo, mas por ter passado da natureza para a vida da eternidade meu nobre pai, que Deus o tenha. Não, ainda não por isso, não por meu pai, ou pela saudade, que como vil ladrão assalta-me o coração de quando em vez. Não, debruço-me tristemente sobre minha alma por causa do mundo que conhecia que se transformou neste mundo que observais. Fraudes, assassínios, traições, fratricídios, incestos. Ó mundo sem rumo, qual barco que furado se afunda apressadamente, matando os que nele adormeceram.

Eduardo – ou Hamlet, como preferirem – soltou um forte suspiro e, deixando os estudantes continuarem seu passeio, acrescentou:

- Nobre senhora, minha mãe, não esqueças de mostra-lhes os fundos e a porta de saída. Que não aconteça como com os cães medrosos ou os pecadores mal arrependidos, se por acaso algum deles se sentir tentado a ir-se de tão hostil ambiente, que não o deixe de fazer com a desculpa de que não sabia que rumo tomar.

Enquanto Eduardo voltava para seu assento e retomava sua leitura, os estudantes, conversando atônitos sobre a esperteza e acuidade de pensamento daquele louco, retomavam o passeio pelo hospital psiquiátrico.

Camila não seguiu a turma, em vez disso, aproximou-se mais uma vez de Eduardo. Estava encantada pelas palavras do homem. Percebeu nelas uma leitura aguçada dos dias que vivia. Encontrara nele um louco mais são que muitos homens que se julgam mentalmente equilibrados. Sentou-se do lado dele. O louco colocou o livro sobre o colo e, virando-se para a garota perguntou:

- Que queres bela Ofélia? Há muito não a vejo, e tu me recebes apenas com silêncio?

- Não tenho palavras, querido Hamlet – Camila decidira entrar no jogo – ou na loucura – de Eduardo.

- Vejo que és sábia, pois sabes que palavras nem sempre são bem-vindas. Bela e sábia. Provavelmente mais bela que sábia. Beleza e sabedoria. Ó combinação rara e poderosa. Muito poderosa. Duas virtudes que quando em um só lugar se encontram, podem dominar e fazer dominar. Mas também podem atrair a si homens babões e transformá-los em virtuosos santos, se usares a beleza para atraí-los e a sabedoria para mudá-los.

- Não creio que seja possível mudar a um homem, Hamlet. Talvez a si mesmo se possa mudar, mas a outros só se muda com o consentimento de suas vontades.

- Talvez mais sábia que bela. Mas digo-lhe já: muda-se um homem sem o seu consentimento, quando se consegue mudar seu coração. Não há vontade deformada que resista a um coração bom.

- E como é possível mudar um coração?

- Ora, de várias maneiras, minha donzela. Por acaso não ouvistes dizer que o ouro se prova no fogo, ou que um ferro inflamado maleável fica? Pois com o coração não há de ser diferente. Até mesmo um coração de pedra (ou de ferro se preferes) se ajoelha perante o fogo de uma paixão.

Eduardo se levantou de súbito, ergueu as mãos e os olhos ao alto e, enquanto passeava pelo pátio do hospício, falou em alta voz:

- Inflame-se um coração com paixão e verás um homem capaz de empreender incansáveis batalhas, caminhar intermináveis jornadas e subir os mais altos montes. Até os mais medrosos e tímidos são capazes de se transformar em grandes oradores quando devem falar da mulher amada, ou da pátria idolatrada, ou ainda, de um Deus humano apaixonante. Mas não basta inflama-lo de paixão. O coração para ser bom deve estar inebriado por uma causa pura. Eis como se cria um santo: um coração apaixonado por seu Deus. Eis o que falta nos nossos dias, doce Ofélia: paixão! Paixão! Paixão! Não pelo poder ou pela luxúria. Paixão por algo que valha a vida. Por algo que valha cada instante do respirar dessa pobre raça humana.

- Suas palavras são para meus ouvidos como mel para minha boca, senhor Hamlet. Mas ainda sinto muito por não encontrar no mundo homens com tamanha paixão e disposição.

- Também o sinto, minha querida. Também o sinto. Sinto por demais.

O discurso de Eduardo acabou provocando uma grande algazarra no pátio. Ao verem-no gritar, os outros loucos puseram-se a imitá-lo, a pular e a berrar. As enfermeiras mandaram os alunos embora para que elas pudessem acalmar os pacientes. Camila se viu obrigada a ir com os outros e despediu-se rapidamente de Eduardo. Quando saía do pátio, a moça deu um último olhar ao literato louco e ouviu sua última saudação.
- Adeus, bela Camila. Guardo-te em meu coração e espero que não desistas do mundo, por encontrar nele mais perdição que sanidade. Não permita que o medo e a desesperança te enclausurem em seu manicômio particular. Vai em paz.

Camila parou no sopé da porta. Absorveu as palavras e prometeu que as guardaria para si. Antes que deixasse o hospital psiquiátrico, no entanto, deu-se conta de um fato: “Ele me chamou de Camila”.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Sobre um fantasma! Desfio 1 do Concurso de Escritores Literatura de Camara

Este texto eu enviei para o Concurso de Escritores Literatura de Câmara. Por favor deem um desconto: eu tinha que enviá-lo até 00h de ontem, mas comecei a escrever às 23h20!!!


O sino soou a meia-noite assim que Hamlet chegou à Esplanada do Castelo de Elsinor. O vento estava forte e o frio era insuportável. O jovem foi se aproximando do local de guarda enquanto ouvia os estrondos de canhões que rugiam à saúde do rei, seu tio.

Não só pelo frio, mas também pela ansiedade, Hamlet tremia da cabeça aos pés. A possibilidade de rever seu falecido pai, mesmo que como um espectro, dava-lhe em certa medida arrepios, e, em outra medida, acalento. Seu corpo estava gélido pela baixa temperatura exterior, mas seu coração ardia em brasas pela esperança que a noite prometia.

- Quem está aí? – perguntou Horácio, que montava guarda.

- Serei seu pior pesadelo, caso não abaixes essa arma – retrucou Hamlet em tom de zombaria.

- Ora, não a abaixarei se ao rei não saldar, e como amigo eu o identificar.

- Com a breca, Horácio. Não se faça de tolo. É Hamlet, sobrinho do rei andante e filho daquele rei que agora os vermes comem.

- Como faltas com tanto respeito a seu pai, pobre Hamlet. Deverias honrá-lo desde ontem até a eternidade.

- Honrei-o em vida e se em morte o uso de piada não vejo em quê peco. Pior faz quem apunhala e difama um morto em vida, e, quando, morre em prantos põe-se para impressionar a multidão.

- De fato, pior seria.

- Então, cala-te e diga-me se o fantasma...

- Calo-me ou falo?

- Oras, não me retruques. Cala-te enquanto falo, e responda-me tão logo termine. Bom assim?

- Assim está.

- Diga-me, pois, se o fantasma de meu falecido pai já passou.

- Ainda não. Não deu meia-noite.

- Ora. O sino soava enquanto eu chegava. Meia-noite já é, mas se estivesses esperando virar abóbora, temo que suas esperanças foram frustradas.

Um vento cortante passou pelos dois guardas e por Marcelo, que também estava de guarda naquela noite. Hamlet percebeu a visão distante e medrosa de Marcelo. Voltando o olhar para onde o guarda fitava, Hamlet viu um espectro transparente e fosco, uma figura imperfeita, porém muito semelhante a seu pai quando em vida. Não imaginava que sentiria tanto medo. Ao ver o fantasma de seu pai, Hamlet teve o coração gelado pelo temor.

- Vamo-nos daqui, Horácio. Marcelo, ordeno que permaneça em vigília toda a noite. Esperava encontrar o que vejo, mas agora tremo de medo ao imaginar que devo me aproximar.

- Ora vamos, Hamlet – disse impaciente Horácio. Queres ser rei um dia, sem ao menos ter coragem de enfrentar um fantasminha de nada?

- Meu reino por um cavalo!!! – completou rapidamente Hamlet, com voz embargada e tremida. Anseio por sair daqui o mais de pressa possível. Vamos, Horácio. Temo por minha vida se sair sozinho.

O fantasma rondava os portões do castelo olhando na direção dos três. Quando Hamlet finalmente enfrentou o olhar do espectro, o fantasma fez sinal para que o seguisse.

- Ele lhe chama, meu príncipe. Será que deverias ir?

Hamlet hesitou por um momento. Hesitou novamente... e novamente. Não tendo para onde fugir, no entanto, colocou-se em marcha na direção do defunto fantasmagórico. Quanto mais se aproximava mais temor sentia. As feições do pai pareciam-lhe cada vez mais claras. O coração ameaçava-lhe saltar do peito. A respiração se tornou ofegante. Estando a menos de dois metros do fantasma, o fantasma soltou um grito alucinante, que doeu nos tímpanos de Hamlet.

- AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH – gritou o fantasma, com as mãos estendidas e a língua para fora.

Hamlet deu um salto brusco e começou a correr de volta na direção de Horácio e Marcelo.

- Socorrei-me. Chamai a guarda régia. Os mortos levantaram-se de suas tumbas e nos querem matar.

Enquanto corria e gritava, Horácio e Marcelo davam longas gargalhadas. Percebendo o ocorrido, Hamlet olha mais uma vez para o fantasma, para certificar-se de que tudo era realmente uma brincadeira.

O espectro coloca as mãos sobre a cabeça e começa a elevá-la. Antes porém, que Bernardo retirasse toda a máscara, Hamlet dá suas últimas palavras:

- É ou não é? Eis a questão. A dúvida se me impõe, mas meu coração já não se agüenta. Um homem parecer fantasma e gritar é possível, mas remover sua própria cabeça...

E caiu desfalecido.