quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Sobre fazer

Pronto, falei!

Essas duas palavras têm se repetido muito em meu vocabulário - que nem é tão vasto assim, pra eu ter muita escolha - e na de muitas pessoas à minha volta. "Pronto, falei", virou moda. Pronto, falei! É claro que é sempre antecedido por alguma frase de efeito, uma brincadeirinha, ou mesmo algo que estava entalado na garganta e já queria sair há muito tempo.

Pois bem, em alguns momentos da vida, a vontade seria a de usar uma frase semelhante, porém um pouco mais impactante - e por que não dizer -, desesperada. "Pronto, FIZ! Tinha que fazer e fiz! Estava enrolando, pensando de mais, dei um "piti", fui lá e fiz!"

Infelizmente, nem sempre é fácil assim. Fazer envolve comprometer pessoas, vidas e histórias e com tudo isso não se brinca. Principalmente, com o coração. O coração do outro é um lugar sagrado, e lá só se entra sem sandálias nos pés, como Moisés ao falar com Deus.

Pensar, repensar e pensar de novo: eis a sina do homem que quer se preocupar em fazer o que é direito, e não o que é impulso.

Fato é que, muitas vezes, a vontade é de fazer parar o tempo, eternizar o segundo que deu certo, sem que seja preciso dizer "Pronto, fiz!", ou pior, "Puts, pensei tanto, agora já era". O segundo apenas perduraria e tomaria conta de tudo o que é coração. E tudo seria tão mais simples como o afagar de dois que se gostam.

Pronto, falei!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Sobre um segundo!

Perdido num emaranhado de pensamentos, João reclina-se sobre a rede, balançando lentamente ao som das folhas mexidas pela brisa. Respira fundo o ar puro e gélido da tarde à beira da praia. Esquece as preocupações das coisas que se foram, e principalmente aquelas das que ainda não são. Pensa apenas em eternizar aquele simples segundo, que nada mais é que isso: simples! Um respirar profundo do ar que lhe dá vida e acalma.

Ah, se todos os segundos fossem como esse...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Sobre um balão e uma viagem - parte 5 e final

Papai e mamãe estavam aflitos, Ben podia perceber em seus olhos e no tom de voz. Os olhos de Ben começaram a marejar. Sabia que algo triste estava por vir.


- Ben, mamãe tem uma doença degenerativa grave, você ainda não sabe o que é isso, mas saberá um dia. Essa doença fará com que eu ... - mamãe parou de falar e respirou fundo, tentando não chorar ...

Logo após a experiência mais fantástica de minha vida, passei a viver dias de imensa tristeza. De fato, o problema de minha mãe não era nada pequeno. Nos dias seguintes, sonhava que eu estava no balão, vendo tudo tão pequeno, até que uma imensa mancha negra aparecia e cobria todas as coisas. Chorava sem parar, e quando minha mãe passou a sofrer os males da doença, o meu mundo caiu.

Vários anos se passaram e minha mãe ia perdendo movimentos e lembranças aos poucos. Por volta dos meus 12 anos - 6 anos depois de toda a história - passei a realmente perceber que não havia volta no estado dela. O corpo de minha mãe seguia inexoravelmente a um fim indesejável, e eu tinha que saber lidar com aquilo.

Busquei em todas as minhas memórias os fatos e atos, ensinamentos e aprendizados que poderiam me ajudar a enfrentar com coragem e amor essa grande dificuldade em nossas vidas. Inevitavelmente, recorria às lembranças daqueles dias passados no balão, buscando dentro de mim acreditar que na verdade tudo era pequeno.

Foi quando tive um sonho. Sonhei que voava nas alturas e, como de costume, um negrume cobria todas as coisas pequenas que eu via do alto. Lá do alto, acima do balão e das nuvens, surgiram alguns pequenos raios de sol que traspassavam bravamente o negrume. Não transformavam tudo em luzes e brilhos, apenas traspassavam, aos poucos, de raio em raio. O raio passava, amanhecia o negrume e logo depois este tornava a tomar conta do local. Até que vários raios passaram a atingir o negrume com mais frequencia, e entre trevas e luzes eu podia visualizar tudo o que estava lá embaixo.

E foi a partir desse sonho que passei a reconquistar a coragem de viver feliz ao lado de mamãe -querida mamãe. A escuridão que enxergava do alto era grande, mas com pequenos gestos de amor, pequenas lembranças e poucas palavras, a escuridão era traspassada de quando em vez, fazendo brilhar a luz da alegria intermitentemente ao negrume da tristeza.

Era tudo tão pequeno, tudo sem grande importância para quem tem um olhar frio e distante. Mas para aquelas três pessoas que viveram essa grande aventura de transformar trevas em luz, e encontrar mesmo na mais triste notícia uma forma de sorrir, tudo que aconteceu era muito significante. Através de pequenas coisas, construíram uma história grande, coesa e bela, digna de importância. Através de pequenas coisas.

Hoje, lembrando do balão e da viagem, lembro-me com carinho especial das belissimas paisagens que vi. A natureza em seu mais lindo esplendor, coroada de flores e folhas, e águas e bichos. Todos muito pequenos, todos contribuindo em pequena proporção para a composição da grande obra. Todos muito importantes, assim como aquele pequeno abraço e beijo que outrora dei em mamãe antes de sair de casa, e que posteriormente vim a saber, lendo seu diário, foi o ponto alto de sua alegria quando em vida.

Sobre um balão e uma viagem - parte 4

Foram longos dias. Tristes, solitários, mas, ao mesmo tempo, formidáveis.

Enxergar o mundo tão pequeno, com todas as suas maravilhas e suas mazelas; enxergar a natureza exuberante e bela e a selva de pedra contruída pelos homens, tão gigante e espaçosa; enxergar rios de águas límpidas em contraste com terras secas em que homens, mulheres e crianças pareciam pequeninas formigas a suplicar que lhes caísse água do céu; enxergar o coração pequeno e angustiado com a falta de papai e mamãe; enxergar o medo bem diante dos olhos, o medo de cair daquela altura fatal; enxergar todas essas coisas e outras tantas das quais não me lembro foi a experiência mais incrível, amedrontadora, fantástica, angustiante - entre tantos outros adjetivos que me faltam - da minha vida.

Eu tinha apenas 6 anos, enxergava o mundo com os olhos de uma criança que conhece apenas seu umbigo e o dos pais. Viajar naquele balão abriu forçosamente minha visão de mundo, expandiu meus horizontes e criou em mim o desejo de não ser apenas uma formiga. "No fundo, é tudo tão pequeno". Esse pensamento foi o primeiro que passou em minha mente quando o balão começou a subir e todas as coisas tomaram proporções minúsculas. Lá de cima, eu só pensava em minha mãe - querida mamãe. Queria chegar em casa a salvo e poder dizer a ela para não se preocupar, por que, na verdade, todas as coisas são muito pequenas. Isso fazia sentido para mim. E por que não dizer que ainda faz? Mas de uma forma diferente.

Tudo é tão pequeno, sim! O que não quer dizer que não tenha importância. E o belo da vida é dar importância ao que é pequeno e ver beleza nele, por que o grande se exalta por si só e já tem muita gente se importando com isso.

Como cheguei a essas conclusões? Bem, antes, falta um pouco da história que não lhes contei ainda.

O menino-viajante - Ben seria chamado assim pelo seus colegas quando voltasse para casa - aterrisou seu balão a muitos, muitos quilômetros de sua escola, em uma plantação de café. A fome e a sede tomavam conta de seu débil corpo pequenino. Chorava angustiado a saudade de papai e mamãe, e o medo de que tivesse sido esquecido por eles arrombava-lhe a alma.

Não demorou muito para que Ben fosse encontrado pelo dono da fazenda que, ao ver o balão e o menino sozinho, soube exatamente que providências tomar. Ligou para a polícia e informou que o menino do noticiário havia sido encontrado e que estava em segurança, alimentado e cuidado.

Dois dias depois, os pais de Ben chegaram para buscá-lo. A alegria banhada de choro e alívio foi inesquecível e até contagiante. Os jornais e televisão noticiaram o reencontro e transforamaram a aventura do menino-viajante num grande espetáculo. Quiseram que o menino fosse dar entrevistas e participar de talkshows, mas papai e mamãe preferiram manter Ben longe das câmeras, principalmente por causa do problema de mamãe. Rapidamente, a história toda foi esquecida pela mídia e pelo povo. Foram atrás de outra história grande para se importar, já que suas vidas "pequenas" não eram suficientes para entretê-los.

De volta à tranquilidade do lar, Ben pôde contar a papai e mamãe tudo o que vivera e pedir a mamãe que não se preocupasse com coisas tão pequenas.

- Ben - disse mamãe em tom melancólico, depois de toda a história. Nem tudo é tão pequeno, algumas coisas grandes acontecem em nossas vidas, e às vezes nós não podemos detê-las.

O menino sentiu que mamãe não havia entendido nada. Foi complacente com ela, afinal, apenas ele havia vivido aquele momento e pudera pensar em tudo o que pensou. Continuou ouvindo mamãe com paciência.

- Ben, precisamos de contar uma coisa.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sobre um balão e uma viagem - parte 3

O homem-viajante - como será chamado o palestrante a partir de agora, porque era assim que Ben se lembraria dele mais tarde - falava de suas inúmeras viagens, descrevendo algumas paisagens usando palavras que procuravam encantar as crianças.

- Um belo dia, eu sobrevoei uma floresta imensa! - dizia ele. Nada naquela floresta parecia ter sido feito para os homens, mas para gigantes. Era impressionante o tamanho das árvores. Em alguns pontos, eu podia ver um rio cortando a floresta. O rio também era imenso. Se eu estivesse no chão, aposto que de uma margem não poderia ver a outra.
- Nossa! - respondiam algumas crianças entusiasmadas.
- É que nem o mar, moço. Quando a gente tá na praia, a gente não vê o outro lado, é muito longe - completava um dos meninos.
- Exatamente. Igual o mar, só que bem menor. Aliás... já sobrevoei o mar também. Foram longos dias sem avistar nada, apenas o oceano azul. Toda a minha provisão estava no balão e eu tinha gás suficiente para alguns dias. Era apenas o céu sobre mim, e o mar aos meus pés, a muitos metros abaixo, claro.

Ben ouvia tudo o que o homem-viajante dizia. Começava a ficar encantado com a ideia de subir em um balão e vislumbrar as maravilhas do mundo. Adorava ver as figuras de alguns livros e gostava principalmente daqueles que mostravam a natureza florida, verde e imensa - como dizia o homem-viajante.

Ben ouvia tudo, mas sequer olhou para o homem-viajante desde que se juntara à turma. O menino não tirava os olhos do balão que crescia a cada segundo. Percebeu que logo abaixo do balão, perto da abertura inferior, havia uma espécie de fogão, que se acendia de tempos em tempos, jogando ar para dentro da imensa bolha que se formava. Sempre havia alguém puxando uma corda quando o fogo saía.

O balão começou a subir levemente depois alguns longos minutos de palestra - pareceram longos para Ben, mas em outros momentos de sua vida, o mesmo espaço de tempo pareceria voar, passar como um relâmpago; e isso não acontece só para as crianças, mas para todos nós, mesmo quando deixamos de ser crianças. Ben viu a cabine ligada ao balão erguer-se na medida em que o balão subia. Imaginou que tudo começaria a voar alto a qualquer momento, bem ali, diante de seus olhos. Quem olhasse para Ben nesse momento, veria olhos bem arregalados brilhando, a cabeça inclinada para cima, a boca levemente aberta. As crianças começaram a gritar. Assim como Ben, todas achavam que o balão começaria a subir. Ben não gritava. O garoto estava fascinado, sentia no peito uma vontade enorme de entrar na cabine e voar.

O balão parou de subir, de repente. Ben, então, percebeu que tudo estava preso ao chão por cordas. O balão só subiria se as cordas fossem desatadas. Ben lembrou de seu cachorro: ele só podia correr, quando soltavam a corrente de seu pescoço. Se não o soltassem, o máximo que poderia fazer era correr em círculos, mas pros cachorros, não basta correr em círculos, eles sempre querem correr mais. "Algumas coisas só podem acontecer se desamarrarmos aquilo que prende elas ao chão", pensou, "e o balão só vai subir se alguém soltá-lo da terra. Será que a professora não quer soltar?"

Enquanto pensava, os meninos da turma começaram a gritar: "Voa, voa, voa!!!". O homem-viajante tentou conter o ânimo exacerbado da turma. Explicou que não voaria, o balão estava ali só de demonstração, para animá-los um pouco. Ben entristeceu-se e a sensação que tinha no peito começou a morrer. De repente, se deu conta de que queria muito que o balão voasse, mas não apenas voasse, ele queria estar dentro. E, inexplicavelmente - ele já havia esquecido o que acontecera de manhã -, queria ir de balão buscar sua mãe em casa.

Sem pensar muito - quando pensam muito, as crianças desistem de fazer algumas coisas, são como os adultos - correu até o balão, cuidando para que a professora não o visse. O medo se instalou em seu coração - as crianças temem muito os adultos, principalmente os professores. Não se importando, e sabendo que o que fazia era importante, chegou até o balão e abriu a porta da cabine.

Ben entrou na cabine, ansioso, coração batendo forte. Estava prestes a fazer a maior viagem da sua vida, ainda que tivesse apenas 6 anos. Antes que alguém o visse, desamarrou o nó que prendia o imenso balão ao chão. Sentiu seu corpo perder o equilíbrio momentaneamente. Sentiu-se leve, e essa sensação o agradou de tal forma que o medo se dissipou em segundos. Ele estava voando, e a cada segundo voava mais longe. Longe de tudo, de todos, apenas voava e via todas as coisas tomarem o seu verdadeiro tamanho: "no fundo", pensou o menino, "é tudo tão pequeno."

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sobre um balão e uma viagem - parte 2

Assim que o carro de papai virou a esquina próxima ao colégio de Ben, o menino pôde ver a surpresa que o aguardava. As crianças estavam todas no jardim, em fileiras, mas visivelmente agitadas e empolgadas com o imenso balão que aos poucos ia se enchendo à vista de todos.

O carro de papai se aproximou e Ben pôde ver com mais nitidez as cores e formas estampadas no tecido do balão. Eram muitos losangos coloridos, distribuídos aleatoriamente sobre a superfície que ia se alargando, à medida que o balão era enchido. Triângulos verdes, amarelos, laranjas, vermelhos, pretos, brancos, azuis, rosas... todos as cores estavam presentes ali, provocando um turbilhão de informações aos olhos de quem via. Ben se esqueceu completamente da tristeza nos olhos da mãe e quase desceu do carro sem se despedir de papai.

- Hey, volte aqui garoto - disse papai, antes que Ben descesse do carro.

Ben ajoelhou-se no banco ao lado de papai e deu-lhe um rápido beijo de despedida, enquanto sorria largamente.

- Você viu que legal papai!!! Será que a gente vai viajar um dia num balão desses?

O sorriso sumiu do rosto do menino. O som da palavra "viajar" remeteu Ben diretamente aos acontecimentos daquela manhã. Em geral, as crianças são rápidas em esquecer as suas mágoas e tristezas, por que sabem viver um dia de cada vez e vivem intensamente cada momento. Assim, o que fica pra trás, geralmente fica pra trás, mas Ben era uma criança um tanto especial e quando sentia algo errado em alguém, preocupava-se com essa pessoa até que a visse feliz novamente.

Papai percebeu a mudança brusca na animação do filho. Ficou sem palavras por um momento, provavelmente pensando no sofrimento de mamãe. Deu um breve suspiro e abriu um sorriso para Ben.

- Não se preocupe, Ben. Aproveite o último dia de aula, brinque bastante e aprenda muito. Quando tivermos uma nova oportunidade de viajar vamos para o lugar que você quiser, que tal?
- Não, papai. Vamos para onde mamãe quiser.
- Se você quiser assim.
- Eu quero. E vamos viajar de balão, para mamãe fugir de todos os problemas. Do jeitinho que ela quer.

Papai pareceu mais preocupado. Imaginou que mamãe tivesse falado isso ao filho. Conhecia bem o filho, e sabia que se ouvira uma frase dessas - "viajar de balão para fugir de todos os problemas" - ficaria com essa ideia gravada na memória por muito tempo. Afinal, Ben e todas as crianças costumam levar muitas coisas ao pé da letra e não sabem distinguir aquilo que os adultos chamam de "modo de falar" ou "linguagem figurativa". Essas coisas são muito complexas para as crianças, e para as crianças tudo deve ser muito simples, por que elas são simples.

Alguns anos depois, Ben descobriu que papai e mamãe realmente tiveram essa vontade de fugir, esse anseio de escapar de tudo e de todos, indo para um lugar em que ficassem imunes de problemas financeiros, brigas, doenças. O próprio Ben se depararia com essa vontade em sua juventude, e depois, quando se tornasse adulto, e depois, quando estivesse velho. Ben descobriria que o ser humano sempre quer fugir do medo e da dor, em vez de enfrentá-los com coragem e braveza, e também descobriria que não importa onde for, o ser humano tem obrigatoriamente que se deparar com a dor e o medo. Não há para onde fugir. Mas isso Ben só entenderia mais tarde, e enquanto criança, ele apenas acreditava no que lhe era dito. Naquele dia, pensava que a fuga que mamãe havia proposto resolveria todos os seus problemas.

Papai, ainda preocupado com o filho, disse-lhe:

- Ben, não queremos fugir de nenhum problema, ok? Mamãe apenas está triste com o que está acontecendo – Ben sequer sabia o que estava acontecendo – e deve ter-lhe falado isso da boca pra fora. Mas poderemos, sim, viajar de balão se você quiser. Depois conversaremos sobre isso, está certo? Você já está atrasado e a palestra vai começar.
- Tudo bem, papai. Tchau – respondeu Ben, dando outro beijo na face de papai e batendo a porta do carro atrás de si.

Parou fora do carro um momento, tentando processar as informações que papai dissera. No entanto, o rosto triste de mamãe saltava-lhe à memória, e suas palavras ficaram gravadas em seu coração. Ben aproximou-se da turma e foi recepcionado pela professora, enquanto mantinha os olhos fixos no imenso balão que crescia a cada segundo. Embaixo do balão, Ben pôde ver, pela primeira vez, uma cabine de madeira que se conectava ao balão por cabos. Deveriam caber umas 20 pessoas espremidas ali dentro.

O menino juntou-se à turma e respirou fundo para tentar esquecer a tristeza e aproveitar a palestra que já começara.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Sobre um balão e uma viagem - parte 1

Ben acordou mais cedo que o costume naquela sexta-feira. Era o último dia de escola do ano, e ele não queria perder o horário por nada. Levantou-se, espriguiçou-se ainda em cima da cama e esfregou as pequeninas mãos no rosto amassado pelo sono.

Saiu da cama e foi enxugar o rosto na pia do banheiro, escovou seus dentes e desceu as escadas correndo até a cozinha. Papai e mamãe já estavam preparando o café e se surpreenderam ao ver que seu pequeno filho acordara tão cedo.

- Bom dia, filhão! – disse papai, levantando-o do chão para lhe dar um beijo no rosto. Acordou cedo hoje, o que aconteceu?
- Tem aula hoje, papai – disse o menino, meio animado, meio sonolento. E é o último dia. Então minha professora falou que vai levar um homem que viaja pelo mundo em uma balão pra falar pra gente sobre os lugares do país que a gente pode visitar nas férias.
- Cara, que bacana – disse o pai tentando mostrar-se animado, mas com um tom de preocupação. Mas me diga, você sabe que não vamos viajar, não é?
- Sério, papai? Por quê?

Ben percebeu que mamãe se mantivera virada para a janela em frente à pia todo o tempo. Nesse momento, mamãe se virou para Ben e o menino pôde ver seus olhos lacrimejantes.

- Ben – disse mamãe -, a mamãe está com alguns problemas. A gente não vai poder viajar, por que eu não posso sair de casa e vocês têm que cuidar de mim, não é, papai?
- É isso mesmo, amor. Entendeu, filhão?

Ben tentou, mas não conseguiu esconder a chateação. Isso é absolutamente comum em um menino de seis anos. Fechou o rosto e começou a lacrimejar, ameaçando um choro incontido. Apesar da pequena idade, Ben percebeu que não ajudaria os pais se chorasse naquele momento. Não entendia o que estava acontecendo, nem sabia o que poderia ser mais importante do que viajar nas férias, mas sabia que mamãe precisaria do seu apoio. O menino apenas tomou seu café da manhã, calado, enquanto seus pais o acariciavam, passando a mão sobre seus cabelos.

Quando Ben saía de casa e se dirigia ao carro do pai, que o levaria para a escola, mamãe o chamou no sopé da porta de entrada, agachando para poder ficar da altura do filho. Ben adorava quando eles faziam isso, sentia-se importante nessas horas. Era como se papai e mamãe quisessem deixar de ser altos só para “entrar em seu mundo” e ficar mais perto dele.

- Ben, não fique chateado por que não vamos viajar, tudo bem? Podemos fazer muitas coisas legais aqui em casa.
- Tudo bem, mamãe – respondeu o menino. Mas você vai ficar bem, não vai?

Mamãe começou a chorar, abraçando o filho com força. Às vezes é difícil para as crianças não saber o que se passa na vida dos adultos e não poder ajudá-los. Ben queria muito ajudar mamãe e perguntou:

- Mamãe, não chora. Eu não estou chateado. O que eu posso fazer pra você não chorar?
- Ah, meu filho – disse mamãe, chorosa. Eu queria poder entrar no balão do rapaz que vai na sua escola e voar pra bem longe de todos os problemas, mas não posso. Deixe que o tempo resolve, ok?

O menino não teve palavras. Apenas abraçou mamãe mais uma vez e beijou-lhe demoradamente o rosto. Quando crescem, as crianças passam a achar que precisam falar muito para se sentirem importantes, mas se Ben soubesse, aquele beijo e abraço sinceros foram o melhor de Ben que mamãe poderia ter recebido.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Sobre medo

Quando as luzes se acenderam no palco, e Bella se viu mais uma vez rodeada por dançarinos e observada por milhares de espectadores, seu coração quase saltou do peito.

Era a última apresentação da temporada, e o teatro estava lotado. Do pouco que pôde observar na escuridão da plateia, Bella viu olhares atentos e sorrisos prestes a se abrirem. Todos estavam encantados com a descoberta do novo talento que era a garota e ansiosos por ouvir sua voz doce e penetrante.

Assim que a orquestra começou, o elenco deu os primeiros passos, acompanhando o ritmo rápido e dançante da música. Andavam em círculos, davam giros no ar, homens levantavam as mulheres que se jogavam no ar fazendo piruetas a mais de três metros do solo. A multidão, atenta, apenas se concentrava na espera do momento em que Bella começaria a cantar.

Parada no centro do palco, o coração de Bella continuava a palpitar, forte e descontrolado. De repente, as luzes do palco se apagaram e acendeu-se uma, solitária, no centro, logo acima dela. Era a deixa para a sua entrada.

A garota começou a cantar. As notas soavam nos ouvidos dos presentes como pássaros voando lentamente num céu de verão. Enquanto cantava, novas luzes eram acendidas, revelando um cenário azul claro onde barcos alvo-prateados se movimentavam sobre uma névoa branca e pouco espessa.

Bella cantava, nervosa internamente, mas irrepreensível em sua apresentação, como deveria de ser. Entre uma nota e outra, seus olhos procuravam no meio da multidão de espectadores o rosto do homem que lhe fortalecia.

Ela não o conhecia, mas ele estivera presente em todas as outras apresentações bastante perto do palco, a ponto de poder ser visto pela cantora apesar da luz ofuscante em seu rosto. O desconhecido se limitava a olhar profundamente nos olhos de Bella durante toda encenação. Rosto impassível, olhar perdido nos infinitos distantes do olhar de Bella, ele apenas mirava a garota, e com ar de aprovação meneava a cabeça afirmativamente, como que para tranquilizá-la. Bella se perdia em seu olhos e, encantada pela força de seu olhar, ganhava ânimo para continuar a apresentação.

Ao final do primeiro show, Bella se inquietou ao perceber que não podia parar de pensar no homem. No segundo show, desejou ardentemente que ele estivesse presente. E estava. O mesmo ocorreu em todos os outros. E a cada espetáculo, esperava ansiosamente que ele viesse visitar seu camarim, mas ele nunca aparecia. O último show chegara, e o nervosismo já não estava na apresentação para uma multidão que já a idolatrava, mas na incerteza de poder um dia conhecer o dono do olhar tão penetrante e revigorador.

A medida em que o show se aproximava do desfecho, Bella se incendiava por dentro, chegando a quase perder o compasso e a afinação por diversas vezes. Em todos esses momentos, buscava furtivamente o homem. O fim estava cada vez mais próximo, era a última atuação. Iria ele atrás dela? Ou ela ficaria esquecida, apenas com o desejo ardente em seu coração? Se perdoaria por não ter tentado encontrá-lo, saber o porquê de encará-la tão profundamente todos os dias?

Pela primeira vez errou. Um erro grave e facilmente perceptível até para ouvidos desatentos. Em vez de consertar-se, visualizou no erro uma oportunidade. Deixaria tudo de lado.

Calou-se. A orquestra continuava e o maestro olhava nervosamente para a soprano, na expectativa de que retomasse o canto. Nada aconteceu. A garota se virou em direção do homem e andou até a borda do palco. Agachou-se. O homem e a garota se fitavam. O público não entendia, mas muitos achavam que tudo fazia parte do espetáculo.

O homem se levantou e estendeu a mão direita para a moça. Bella hesitou. Pensou em perguntar seu nome, o que fazia ali, o que queria, mas não foi capaz de emitir um som sequer. Havia magia em seu olhar, ela sabia. Pela primeira vez, deu-se conta de que a plateia começava a se inquietar. Com medo de que começasse uma confusão, apressou-se em dar a mão ao homem que lhe olhava com tanta vivacidade.

Sentiu o calor de sua mão e um arrepio instantâneo tomou conta do seu corpo. No mesmo momento, o homem puxou-a levemente e começou a andar em direção ao corredor lhes levaria para fora. Bella teve a brevíssima sensação de que começaria a voar. Teve certeza, por mais absurda que fosse, de que se continuasse andando com aquele homem de fato voaria.

Seu coração quase saía do peito e sua respiração estava ofegante. A garota ouvia o murmúrio da plateia e via a insatisfação no rosto do maestro. Teve medo e resistiu ao homem. Ele, aparentemente sem entender, parou e virou-se para Bella. Ela largou sua mão. Olhou para os espectadores ao seu lado e pediu para terem calma.

Enquanto o homem permanecia parado no meio do corredor olhando-a, a garota voltou para o palco, pedindo breves desculpas ao maestro. A música tornou a soar. A garota olhava tristemente para o homem. Ele meneou a cabeça e saiu.

Ela sabia que perdera a oportunidade de voar. Por causa de um medo bobo, tolo, faltou com o seu maior desejo. E voltou a cantar. E encantou a todos. E, enquanto cantava, doía-lhe a alma. E viu quando a porta de saída entreabriu-se, deixando vazar uma pequena luz que logo se apagou assim que se fechou a porta.