quarta-feira, 29 de abril de 2009

Sobre Caledônia

O garoto saiu de casa e se dirigiu à orla. Ludi morava na Rua do Alfaiate, uma ruela com casas de ambos os lados, que ficava a pouco mais de 1 km da praia. A ruela seguia com curvas até a borda da praia, onde havia uma rua principal, Avenida do Pesqueiro, que contornava toda a orla de Deruahd. Carruagens com seus cavalos e cavalos com seus cavaleiros - fazendo comércio, transporte ou serviço postal - deixavam a principal rua de Deruahd movimentada por todo o dia. Ludi seguiu a então deserta Rua do Alfaiate até a Avenida do Pesqueiro observando as nuvens brancas que voavam no céu, procurando encontrar animais, barcos ou qualquer outra coisa desenhada em sua alvura. Encontrou uma tartaruga sem dois braços e uma panela que para ele parecia bastante deformada. Sua diversão foi interrompida ao quase esbarrar em uma senhora, cabelos grisalhos e corcunda proeminente, mas com um sorriso muito simpático, que carregava em uma mão uma sacola com peixes e na outra um guarda-sol.

- Hey Ludinho, olhe por onde anda rapaz, disse a velha com voz rouca e fina.
- Bom dia, senhora Cenis. Desculpe o mau jeito, estava olhando para o céu.
- Ora, eu percebi. Ludinho, Ludinho, sempre olhando para o azul. Quando não é para o mar, é para o céu.
- Sim, senhora Cenis. Ambos me encantam, respondeu pensativo.

Cenis continuou caminhando e sorrindo, deixando o garoto parado com a cabeça levantada, apertando a vista para protegê-la do sol.

- Cuidado, Ludinho - disse Cenis, virando-se para ele. Quem olha de mais para o céu, pode esquecer de olhar onde pisa...
- ... e acabar tropeçando – completou o garoto.

A senhora riu desmedidamente, mostrando um sorriso branco perfeitamente em ordem. Respirou fundo após a gargalhada, secou uma lágrima que escorrera de seus olhos castanhos escuros e disse:

- Hoje, mais do que nunca, veio bem a calhar tal ditado, hein?
- Com certeza, senhora Cenis – Ludi respondeu sorrindo.

Cenis ajeitou a sacola com os peixes na mão e tirou o guarda-sol de cima da cabeça. Fazendo muito esforço na corcunda dolorida, voltou o quanto pôde o olhar para o céu. Contemplou a imensidão azul por um instante. Nesse momento, Ludi percebeu que não era o único dos dois que gostava de admirar o céu. Sentiu pena pela situação física de Cenis que apenas com muita dificuldade podia olhar para o alto, para as alturas, pois a corcunda obrigava-a a olhar sempre para o chão. Antes que o garoto pudesse fazer suas próprias reflexões, Cenis exteriorizou seus pensamentos:

- Por outro lado, podemos dizer que quem olha de mais para o chão não vê a beleza do azul, – silenciou-se por um segundo e completou - nem a clareza do sol.

As últimas palavras custaram a sair de seus lábios. Com voz embargada e visível comoção, olhou para o lado de Ludi (mas não olhava para ele, olhava distante), cobriu-se com o guarda-sol e disse:

- E para esses não há volta, meu filho. Então, continue olhando para o céu, menino. Continue olhando para o céu.

O garoto olhou para a velha. Tinha vontade de falar-lhe palavras de consolo, mas essas não lhe vieram à mente. Na verdade, não tinha certeza se entendeu o que ela realmente quisera dizer. Permaneceu calado, olhando-a, vagarosa, partir para sua casa. A senhora caminhava lentamente, fazendo muito barulho na silenciosa Rua do Alfaiate ao arrastar sua sandália de madeira no chão. Ludi sempre se impacientava quando acordava de manhã com o barulho da madeira se esfregando nas pedras, mas a partir daquele dia não mais se incomodou. Antes de a velha entrar em casa, Ludi a viu esforçar-se mais uma vez para olhar o céu. Ela olhou e sorriu. E então vieram a Ludi as palavras que lhe faltaram a minutos atrás: “O céu sempre estará lá em cima, senhora Cenis – disse baixinho de si para si. Então sempre haverá volta... sempre haverá volta.” Virou-se e olhando agora para o horizonte, pois o mar já estava visível, continuou seu caminho.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Sobre ir-se

Eu não sou daqui,
Este não é o meu lugar.
Fabricarei as minhas asas
E buscarei o meu lar.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Sobre a Luz

Pode ser que quando vier a escuridão
tenhamos a estranha provação de nos entregar
débeis e sem forças, assombrados por um futuro
que nunca ocorrerá, por uma espera frustrada.

Uma forte luz ainda que se apague ilumina o coração.
Pois se um dia pôde-se ver com clareza,
na penumbra, pode-se saber a direção de casa.
E caminha-se mesmo que vacilante e devagar.

Mas novamente vem a aurora, ergue-se novamente a luz,
muito mais brilhante, resplandecente, encorajante.
E não se pode resistir ao seu poder. Ela recorda o caminho,
renova as forças, impele a caminhar. Ela nos chama, é só seguir.

sábado, 11 de abril de 2009

Sobre corações doridos

Pranto. Pesar do coração.
Olhares que se desviam.
Andar vacilante e sem rumo.
Que rumo?

Perda. Desolação.
Quando a noite cai: solidão.
Quando o dia vem: saudade.
Palavras? Pensamentos?

Silêncio. Silêncio.
Silencia-se o coração.
No silêncio,
a lembrança.

Das palavras que formavam.
Dos braços que agiam.
Do olhar que aliviava.
Lembrança que fortalece.

Braços que acolhem.
Braços solidários no amor.
Mas braços fracos, debilitados de dor.
Braços que esperam.

Olhares que se encontram.
Olhares miúdos, perdidos na dor.
Olhares que se aliviam.
Olhares que esperam.

Um refúgio necessário.
Braços e olhares que mais dor sentem.
Silêncio em torno dela.
Reunião de corações doridos.

Espera dolorosa.
Lembrança esperançosa:
"Se a semente não morre..."
Espera na dor. Espera.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sobre tons suaves


Ele sentia a harmonia do mundo. Era só o que lhe ocupava. Apenas respirar e sentir. Respirar e sentir. Havia algo a mais no espaço além do que se podia ver e além do que ouvidos desatentos poderiam ouvir. Ele sentia, e sabia.

Os acordes soavam fortes e perdiam-se ao longe, inaudíveis, mas ainda vivos. Sempre vivos. Vivos porque o som tão logo nasce propaga-se para sempre, perdendo-o de vista quem o tocou. O som nasceu para o infinito e só no infinito ele pode ser sentido.

Ele sentia a harmonia e ela o fazia viver. Ele vivia para ouvir, ele ouvia pra viver. A música dizia que tudo é harmonia, mas que algumas notas às vezes saem distorcidas e que grandes árias são tocadas para ouvintes despreparados.

A música cantava-se e pedia para não ser ouvida somente, mas ser sentida, ser querida e repetida. "Só se vê bem com o coração". E o coração contém a alma da música, do som e da vida. E a música da alma é o amor.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Sobre a morte da palavra...

Não havia palavras para expressar tamanha dor. A família ardia em desconsolo, os amigos, surpreendidos com a notícia repentina, tardavam-se em aceitar o ocorrido.

O pobre defunto tivera muitos conhecidos, muitos mais admiradores e uma família extensíssima (de filhos e netos contavam-se 20). Fizera muitos chorarem com suas preces tocantes, fizera muitos falarem com suas palavras instigadoras, e agora calava a infinitos com sua partida imprevista.

A palavra morrera; a poesia era triste; o epitáfio, uma prosa insossa que não correspondia à grandiosidade de tamanho orador. O mundo perdera um pai, um avô, um pensador.

E em troca, ganhara apenas um conto pequeno e sem valor. O que faz-me pensar que grandes homens calam quando não tem o que falar.