quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sobre heróis e dragões

... O grande e terrível dragão finalmente apareceu na cidade. Todos temiam por esse dia e ficaram espantados quando o lagarto voador soltou fogo por suas enormes narinas. Muitas casas começaram a pegar fogo e, no castelo do rei, a princesa gritava e gritava desesperada, com medo de seu povo ser atingido pelas chamas. Quando o dragão ouviu os gritos da princesa, voou até o castelo e, planando sobre as janelas, agarrou a donzela com suas garras. A princesa gritava eufórica por socorro para que um herói pudesse salvá-la. Assim, os dois voaram até a montanha do dragão e lá ficaram por muitos dias. Eis que apareceu um pobre, mas valente, camponês e se pôs à disposição do rei para salvar a princesa. O rei, que já estava desolado e sem esperancças, lhe entregou um cavalo e uma armadura. O pobre camponês se dirigiu temeroso até a montanha, decidido em salvar a princesa, mesmo que disso dependesse sua vida. Ao chegar na montanha, encontrou o dragão, contra quem lutou durante dias e dias sem cessar. E o camponês cansava-se, mas não desistia de tentar. Até que um dia, finalmente apunhalou o dragão em seu coração, e salvou a princesa dos perigos... ...

Maria virou outra página do livro, mas percebeu que o pequeno Léo já estava dormindo. Afagou seu cabelo e beijou-lhe a testa, desejando-lhe uma boa noite. Enquanto Maria passava pelas camas dos outros garotos de rua, Léo entreabriu os olhos e perguntou-lhe:

- Mãezinha - Maria sempre se emocionava ao ser chamada de mãe por aqueles meninos -, existem heróis como esse da história?

Maria voltou até a cama de Léo, sentou-se ao seu lado e, ainda sentindo o frio da noite, respondeu-lhe:

- Você gostaria que existissem?

- Sim! - o garoto estava sonolento, mas seu olhar mostrava uma decisão firme em obter aquela resposta. Maria aprendera a dar valor a isso durante os anos em que se doou àquelas crianças. Elas não tinham lar, não tinham pertences e não tinham família, tudo o que tinham era a si e às suas dúvidas, medos, e esperanças, expressados das mais diversas formas. E era preciso levar a sério tudo aquilo.

- Você gostaria que existissem dragões?

- Não - o menino respondeu assustado.

- Então não são precisos heróis.

Maria piscou o olho e deu um sorriso para Léo.

- Agora vá dormir.
- Tá bem, boa noite. Amanhã de manhã você ainda estará aqui, não é?
- Sim, Léo, sempre estou. - Sua voz saiu embargada e uma lágrima ameaçou-lhe escorrer do rosto.

Quando Léo finalmente adormeceu, Maria passou pelo quarto observando cada menino. Eram muitos, deitados em beliches bambas em um dormitório espaçoso, mas super lotado. "E tantas outras ainda estão nas ruas...", pensou.

Maria dirigiu-se ao refeitório. Tudo estava escuro e silencioso, bem diferente de como o abrigo ficava durante o dia, cheio de crianças correndo, pulando e às vezes chorando. Elas se alegravam e brincavam, mas, quando a noite caía, a solidão lhes batia na porta. E isso doía-lhes.

Abriu a geladeira e encontrou algumas poucas frutas que sobraram das refeições do dia. Sentou-se em uma mesa com uma banana e uma maçã e comeu pela primeira vez desde o almoço. Não era fácil cuidar de tantas crianças - dar banho, fazer almoço e jantar, confortar, alertar e corrigir, e tudo isso com o pouco dinheiro que a instituição recebia - mas ela escolhera aquela vida para si e sabia que valia a pena abdicar-se por quem precisava mais de si do que ela mesma.

Enquanto isso, Léo e outros meninos sonhavam em suas camas. Sonhavam com dragões e monstros, mas sorriam. Sorriam, na certeza de que existem heróis.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Sobre uma tarde agradável

Aquela sim foi uma tarde agradável. Depois de muitos dias passando horas e horas dentro de uma sala onde não chegam os raios solares, João e Maria se juntaram e foram para um gramado próximo ao prédio da garota. Sentarem-se em cima de um pequeno morro, sob uma sombra fresca, e ficaram ali conversando sem fim.

O Sol fabricava um mosaico de luz e sombras sobre suas pernas. Eles apreciavam aquilo e deixavam-se tocar pelo vento e as horas passavam por eles sem constrangimento.

João lembrou-se de quando era criança, de como costumava subir em morros como aquele com uma folha de papelão em mãos, e de como descia o morro escorregando sentado sobre o papelão. Lembrou-se de como se machucou vária vezes nessa brincadeira, e das muitíssimas vezes em que a bunda saía dolorida ou o corpo todo pinicado.

- E como era bom. Subia a ladeira, esperava algum amigo descer e ia atrás dele. Às vezes até nos esbarrávamos lá em baixo, quando havia algum apressadinho. E ríamos...

- Que criança nunca fez isso, né? - lembrou Maria.

- Bons tempo aqueles - disse João, olhando distante, para os carros que passavam na rua a vários metros de onde estavam.

Maria também recordou sua infância. Pular amarelinha, elástico. Contava com uma amiga os carros que passavam na rua. Se passassem mais carros vermelhos, ela ganhava, se passassem mais azuis, quem ganhava era a amiga. E brincar de boneca? Era criar um mundo sem problemas e onde o tempo e a distâcia simplesmente não existiam. Criava-se um mundo ideal, em que não haviam discussões ou dores.

- Esse era o meu mundo de criança - a garota completou. - E penso que deveria ser o mundo de todas as crianças. Um mundo de sonhos e de muitas possibilidades. Um mundo de todas as possibilidades. O pior pecado contra a humanidade é privar os pequenos da imaginação, de viajar em seus sonhos e conquistar em suas mentes um mundo mais digno para todos. Só assim elas crescem capazes de acreditar, criar e transformar a realidade.

- Quando paramos de sonhar... - disse João pausadamente, como que descobrindo naquele momento o que iria dizer - ... é então que crescemos?

- É - respondeu Maria melancolicamente. - Acho que é isso.

- Eu não quero crescer Maria.

- Eu também não, João.

E passaram o resto da tarde contando os carros que passavam. E - quem ganharia a partida - aquele era o único problema a ser resolvido. E foi agradável assim, como as coisas simples devem ser.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sobre o que é nosso...

E por que nos vemos livres, nos sentimos sós. Prestes a fazer escolhas que transformem nossos destinos. Mas por mais que tentemos compartilhar, a decisão é apenas nossa e de mais ninguém. E aí mora a solidão.

A solidão de dar um passo sozinhos e sem braços que nos sustentem. E caminhando seguiremos, com rostos e mãos conhecidos ao nosso lado. Mas, aqui dentro, o que nos impulsiona a caminhar é nosso, e somente nosso.

E aí mora a solidão...