quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Sobre uma visita ao hospício

Entraram na sala de espera, ansiosos por mais uma aula de campo. As aulas experimentais eram sempre as mais empolgantes, mesmo sendo as que mais deixavam trabalho para casa. O pátio interno podia ser visto através de uma porta de vidro. No pátio, vários loucos – doidos, lunáticos, ou como preferir – estavam em seu horário de descanso. Esse era também o horário de visita, o momento em que os estudantes entrariam em contato com o mundo interior de cada ser humano ali presente. Dez alunos, com jalecos brancos e pranchetas em mãos, esperavam a conferência dos nomes e crachás para poderem entrar.

- Muito bem, só faltam dois – disse a enfermeira-chefe, olhando para um casal de namorados. O casal, aí, não pretende entrar hoje?

Camila olhava absorta para o pátio interno. Sempre se interessara por psiquiatria pelo fato de ter casos de doentes mentais na família. Numa mistura de interesse acadêmico e tristeza melancólica, mantinha os olhos fitos naqueles homens e mulheres que um dia haviam perdido o discernimento do certo e do errado, do real e do imaginário, do verdadeiro e do falso. A cada dia que visitava o hospital psiquiátrico, retornava para casa com seqüelas profundas no pensamento, que a faziam recordar, durante toda a noite, de sua infância vivida ao lado da mãe doente.

A maioria dos pacientes andava aleatoriamente pelo espaçoso ambiente do pátio. Alguns corriam, outros apenas permaneciam sentados. Quase todos falavam, provavelmente frases soltas e incompreensíveis. Camila observava-os atentamente ao lado de Anderson. Vez ou outra, apertava a mão do namorado como que para se sentir protegida das lembranças que assaltavam sua memória. A mãe doente doía-lhe no peito ainda hoje.

Acordou dos devaneios quando um colega de classe tocou-lhe o ombro.

- Vamos, Camila. Só faltam vocês dois.

Camila e Anderson foram até a enfermeira-chefe, deram seus nomes e receberam os crachás. Antes que voltassem à fila de estudantes, a enfermeira advertiu-os:

- Se ver essas pessoas em tal estado assusta vocês, façam-se um favor: não conversem muito com eles, não procurem intimidade. O sofrimento será menor assim. A cabeça deles não funciona como a nossa. Eles não precisam do que nós precisamos, só precisam viver seus últimos dias, talvez anos, podendo acreditar ser quem pensam que são, acreditar que vivem no mundo em que pensam viver. Eles são apenas seu objeto de estudo, lembrem-se disso. Não se envolvam com suas cabeças complicadas.

Ditas essas palavras, os alunos entraram no pátio interno e foram recebidos por uma outra enfermeira que lhes mostraria o local e falaria um pouco sobre alguns pacientes. Enquanto a mulher falava, Camila não podia parar de observar aqueles homens e mulheres que andavam de um lado para outro sem saber onde estavam. Uma mulher dançava como bailarina, e de vez em quando parava para receber aplausos que vinham de algum lugar de dentro de sua cabeça; um jovem corria atrás de outros pacientes com suas partes íntimas expostas, dizendo: “olha o xixi, olha o xixi, olha o xixi”. Camila pensou que se não fosse muito triste, talvez fosse até cômico.

De todos, um em especial lhe chamou a atenção. Em meio a tanta algazarra e tanta loucura completamente desorientada, um homem se mantinha sereno, sentado no sofá, lendo um livro. Não fosse pela roupa que diferenciava empregados e pacientes, a garota juraria que aquele homem não fazia parte do número de loucos. Ela se desviou dos alunos e aproximou-se do homem. Algo nele lhe prendia a atenção e lhe atraía. O homem virou o rosto de súbito, não viu a garota, mas o grupo de estudantes. Levantou-se calmamente, depôs o livro sobre o sofá e encaminhou-se até os alunos. A enfermeira ainda apresentava os aposentos quando o homem a interrompeu:

- Bons dias, nobres cavalheiros e belas damas. Sejam muito bem-vindos ao meu reino, que por ora também é vosso. Por ora apenas, por favor, não vos acostumeis.
Parou por um instante, observando os que cumprimentava, e, apontando para um dos alunos, continuou:

- Ora, se não é meu eterno amigo Guilde... Guilderei... Guilderainestains... Ora, me desculpe, nunca soube pronunciar seu digníssimo nome, caro amigo. Podes me dizer a que devo a honra de tão ilustres presenças? Mais nobres visitas eu não poderia esperar.

O estudante, imaginando que deveria corresponder aos cumprimentos e procurando fazer de sua fala pomposa e igualmente sem sentido, respondeu:

- Ilustre presença é a sua, amigão... digo, caro companheiro e nobre cavalheiro. Tu sabes – parou por um minuto para formular a frase, enquanto seus colegas riam – tu sabes que este humilde amigo que a ti te apresenta não vale mais que um vintém furado comparado à tua excelentíssima pessoa.

- Ora - animou-se o louco –, tão nobre cavalheiro se dignou rebaixar para me exaltar. É fato que pouco ou nada vales, Guilder... nobre cavalheiro. Em verdade, se eu pudesse pagar para retirarem de minha janela o galo que toda manhã me acorda, despertando-me de divinos sonhos com Ofélia, meio reino entregaria para tal, e tanto mais o faria para que lhe tirassem de minha presença, covarde homem.

Os estudantes ficaram calados, alguns esboçaram um sorriso, segurando uma gargalhada que tentava sair de suas gargantas. A enfermeira que os acompanhava tomou a frente e lhes disse:

- Este é Eduardo Nóbrega. Antes de vir para cá era professor de literatura. Muito culto e estudado, depois da morte da esposa entrou em depressão e passou a acreditar que era um personagem saído das peças de Shakespeare.

- Ora nobre senhora, amada mãe, por quem tanta estima guardo, não me zombe na frente dos convidados. Este é sim Hamlet, príncipe da Dinamarca, que vos fala – e virando-se apenas para os estudantes, como que para evitar que fosse ouvido pela enfermeira, completou: Minha mãe não está bem, desde que seu amante se foi para a Noruega com uma meretriz. Ora, como podia esperar juras de amor eterno de um assassino que ultraja o nome de seu próprio irmão para ter o reinado e sua esposa. Vê-se que somente os porcos crêem nos porcos sabendo o que são. Minha mãe não é melhor que ele... mas pensando bem, por que me julgo capaz de julgar, tão desprezado e desprezível que estou?

E voltando a dizer para todos, continuou:

- De fato, ando prostrado, e falta-me a luz que outrora brilhou em meu rosto. Mas isso não por ter perdido a querida Ofélia, que, estranhamente, não encontro a bastante tempo, mas por ter passado da natureza para a vida da eternidade meu nobre pai, que Deus o tenha. Não, ainda não por isso, não por meu pai, ou pela saudade, que como vil ladrão assalta-me o coração de quando em vez. Não, debruço-me tristemente sobre minha alma por causa do mundo que conhecia que se transformou neste mundo que observais. Fraudes, assassínios, traições, fratricídios, incestos. Ó mundo sem rumo, qual barco que furado se afunda apressadamente, matando os que nele adormeceram.

Eduardo – ou Hamlet, como preferirem – soltou um forte suspiro e, deixando os estudantes continuarem seu passeio, acrescentou:

- Nobre senhora, minha mãe, não esqueças de mostra-lhes os fundos e a porta de saída. Que não aconteça como com os cães medrosos ou os pecadores mal arrependidos, se por acaso algum deles se sentir tentado a ir-se de tão hostil ambiente, que não o deixe de fazer com a desculpa de que não sabia que rumo tomar.

Enquanto Eduardo voltava para seu assento e retomava sua leitura, os estudantes, conversando atônitos sobre a esperteza e acuidade de pensamento daquele louco, retomavam o passeio pelo hospital psiquiátrico.

Camila não seguiu a turma, em vez disso, aproximou-se mais uma vez de Eduardo. Estava encantada pelas palavras do homem. Percebeu nelas uma leitura aguçada dos dias que vivia. Encontrara nele um louco mais são que muitos homens que se julgam mentalmente equilibrados. Sentou-se do lado dele. O louco colocou o livro sobre o colo e, virando-se para a garota perguntou:

- Que queres bela Ofélia? Há muito não a vejo, e tu me recebes apenas com silêncio?

- Não tenho palavras, querido Hamlet – Camila decidira entrar no jogo – ou na loucura – de Eduardo.

- Vejo que és sábia, pois sabes que palavras nem sempre são bem-vindas. Bela e sábia. Provavelmente mais bela que sábia. Beleza e sabedoria. Ó combinação rara e poderosa. Muito poderosa. Duas virtudes que quando em um só lugar se encontram, podem dominar e fazer dominar. Mas também podem atrair a si homens babões e transformá-los em virtuosos santos, se usares a beleza para atraí-los e a sabedoria para mudá-los.

- Não creio que seja possível mudar a um homem, Hamlet. Talvez a si mesmo se possa mudar, mas a outros só se muda com o consentimento de suas vontades.

- Talvez mais sábia que bela. Mas digo-lhe já: muda-se um homem sem o seu consentimento, quando se consegue mudar seu coração. Não há vontade deformada que resista a um coração bom.

- E como é possível mudar um coração?

- Ora, de várias maneiras, minha donzela. Por acaso não ouvistes dizer que o ouro se prova no fogo, ou que um ferro inflamado maleável fica? Pois com o coração não há de ser diferente. Até mesmo um coração de pedra (ou de ferro se preferes) se ajoelha perante o fogo de uma paixão.

Eduardo se levantou de súbito, ergueu as mãos e os olhos ao alto e, enquanto passeava pelo pátio do hospício, falou em alta voz:

- Inflame-se um coração com paixão e verás um homem capaz de empreender incansáveis batalhas, caminhar intermináveis jornadas e subir os mais altos montes. Até os mais medrosos e tímidos são capazes de se transformar em grandes oradores quando devem falar da mulher amada, ou da pátria idolatrada, ou ainda, de um Deus humano apaixonante. Mas não basta inflama-lo de paixão. O coração para ser bom deve estar inebriado por uma causa pura. Eis como se cria um santo: um coração apaixonado por seu Deus. Eis o que falta nos nossos dias, doce Ofélia: paixão! Paixão! Paixão! Não pelo poder ou pela luxúria. Paixão por algo que valha a vida. Por algo que valha cada instante do respirar dessa pobre raça humana.

- Suas palavras são para meus ouvidos como mel para minha boca, senhor Hamlet. Mas ainda sinto muito por não encontrar no mundo homens com tamanha paixão e disposição.

- Também o sinto, minha querida. Também o sinto. Sinto por demais.

O discurso de Eduardo acabou provocando uma grande algazarra no pátio. Ao verem-no gritar, os outros loucos puseram-se a imitá-lo, a pular e a berrar. As enfermeiras mandaram os alunos embora para que elas pudessem acalmar os pacientes. Camila se viu obrigada a ir com os outros e despediu-se rapidamente de Eduardo. Quando saía do pátio, a moça deu um último olhar ao literato louco e ouviu sua última saudação.
- Adeus, bela Camila. Guardo-te em meu coração e espero que não desistas do mundo, por encontrar nele mais perdição que sanidade. Não permita que o medo e a desesperança te enclausurem em seu manicômio particular. Vai em paz.

Camila parou no sopé da porta. Absorveu as palavras e prometeu que as guardaria para si. Antes que deixasse o hospital psiquiátrico, no entanto, deu-se conta de um fato: “Ele me chamou de Camila”.

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