quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sobre um menino e um capitão

O capitão levantou com a aurora amanhecendo no horizonte. Caminhando pela areia lentamente, espreguiçando-se, apenas meio acordado, contemplou o imenso mar azul pelo qual deveria navegar. Seus olhos lacrimejaram. Seu coração ardia, batendo em disparada. Suas mãos, mãos de ferro e de brandura, dançavam no ar guiando como um maestro as ondas do mar. Rejubilava-se. Em um dia estaria embarcando rumo à última de suas viagens. Esperou pacientemente o sol se erguer majestoso, enquanto, aos poucos, toda a cidade acordava e dava vida às ruas e ruelas. O porto foi enchendo preguiçosamente e os ruídos dos barcos e máquinas se sobrepuseram ao leve e doce som do mar. O marulhar levantava os barcos suavemente enquanto a orla ia se desfazendo à medida que mais barcos e canoas se achegavam ao porto.

Tudo era movimento. Tudo era som. Tudo era pressa. E tudo contrastava com a maravilhosa calmaria do mar, com o doce som das ondas a bater nos rochedos nus, com a harmonia do gigante que ora dormia sereno, ora roncava alto, qual cão de guarda atento aos perigos da rua. O capitão amava o mar, e gostava de imaginá-lo assim, como um gigante adormecido.

As horas passaram despercebidas. A manhã se foi sem que o capitão sequer saísse de seu posto ou falasse uma palavra. Os marinheiros o conheciam suficientemente bem para saber que não deveriam se intrometer naquela solenidade: o capitão olhava o mar, um pouco de cada vez, ouvia-o, sentia-o, deixava-se tomar conta pelos mistérios contidos em toda sua imensidão, pulsava com o mar, era um com o mar; e o mar, em retribuição, lhe lançava afagos e canções, contava-lhe histórias, tocava-lhe o coração e lhe deixava claro, claro como o céu mais limpo de nuvens, que ele, o mar, jamais poderia ser abarcado, jamais. Tudo isso acontecia sem que precisassem se tocar, como num ritual em que o divino e o humano se compartilham, sem que o divino desça ou o humano transcenda. Mas o ritual nada mais é que uma primeira porta de entrada, e dessa solenidade entre capitão e mar sempre nascia o contato íntimo do adentrar-se. Todos já sabiam, então, que o capitão partiria em mais uma viagem.

A tarde caía, o céu azul-laranja escurecia e o porto ia dormindo lentamente. Pôde-se ouvir novamente o som do marulhar, e apenas ele. Gaivotas voavam ao longe alheias ao mundo dos homens. Levantavam vôo alto e desciam em rasantes sobre o mar para se alimentarem. Tocavam leve e brevemente as águas e arremessavam-se novamente ao escuro azul do céu. O capitão acompanhava essa dança e, inevitavelmente, deitava seu olhar sobre o horizonte.

- Sabe, menino – disse, sem desviar o olhar fixo no horizonte, ao garoto que por horas estava sentado no banco, observando-o, fascinado.

O garoto se levantou de um salto, como se tivesse sido acordado de um pesadelo horrível. Estava atento e sem dizer uma palavra demonstrou todo interesse em ouvir as palavras que se seguiriam.

- ... há quem diga – continuou o capitão – que o céu e a terra se encontram na linha do horizonte. O que você acha disso?

- A... acho que... que se a gente se aproxima do horizonte, o céu e a terra só se tocam mais na frente. Sempre é mais na frente, não é?

Os dois se entreolharam. Quieto, o capitão pareceu voltar ao estado inerte daquele dia. Estava refletindo sobre as palavras do pequeno.

- É sempre mais a frente. Você me surpreendeu, sabia?

O silêncio reinou por minutos. Ambos olhavam para o mar, para o horizonte distante que jamais poderia ser alcançado.

- Eu costumava acreditar – começou o capitão, interrompendo o silêncio – que o céu e a terra se encontravam não no horizonte, mas no coração dos homens. Com suas palavras, agora, penso que talvez eles nunca cheguem a se tocar, por que sempre há mais de céu a buscar e mais de terra a se deixar.

- Capitão, será que um dia eu serei um marinheiro tão famoso quanto o senhor? – o garoto perguntou sem respirar, como se segurasse a pergunta há muito tempo.

- Famoso é o mar, pequeno. Nós, marinheiros, apenas o fazemos ser conhecido. O marinheiro que se preocupa com famas e glórias deixa de lado o mais importante dessa profissão: conhecer o mar e conhecer-se a si mesmo ao navegar.

O garoto sorriu largamente. De alguma forma aquelas palavras lhe tocavam o coração e lhe indicavam um caminho excelente a ser seguido, um percurso que valeria a pena ser percorrido.

- Eu quero me conhecer, capitão. E quero conhecer o mar.

- Esse é um belo sonho. Um sonho que vale a pena ser sonhado por que nunca será suficientemente alcançado.

Deixaram-se calar pelo resto do dia até se despedirem silenciosamente. Enquanto o menino voltava para casa equilibrando-se em meio-fios, o capitão se dirigiu a seu barco, sua casa, onde passaria a última noite próximo à terra. A lua, que até então iluminava a orla, escondeu-se por trás das nuvens, escurecendo os sonhos do capitão.

******

No dia seguinte, as nuvens decidiram não mostrar o sol. O vento gelado arriscava-se entre as ruelas e cortava as faces corajosas que saíam de casa cedo. Não eram muitos os corajosos a enfrentar o frio, somente os mais curiosos. Queriam ver o capitão e sua despedida. Era quase como um teatro ou uma dança: o capitão preparava algumas palavras de despedida para a terra, sussurrava palavras inauditas de boas vindas ao mar. Levantava velas, içava âncora, tudo em movimentos belos e serenos e comoventes. Aqueles que assistiam à quase celebração voltavam para casa um pouco mais calmos, um pouco mais íntimos da natureza e seus mistérios, um pouco mais próximos do transcendente que se deixava tocar durante aqueles breves minutos.

Quando os primeiros rostos começaram a aparecer na orla, já encontraram o capitão a meio caminho da celebração. Movia-se de um lado para o outro em silêncio profundo. Seus passos eram leves como se não quisesse acordar quem dormia no andar de baixo, o gigante adormecido. Vez ou outra, detinha-se e lançava olhares amáveis para o horizonte. Não parecia se importar com o mau tempo. Não parou quando alguns poucos pingos de chuvisco ameaçaram derrubar um grande temporal. Apenas parou alguns segundos após um tremendo trovão que assustou a todos. Parou em sinal de respeito às forças da natureza, mas logo continuou com o ritual. Ele era suficientemente próximo do mar para não temê-lo, pensavam todos.

Entre a multidão que se adensava, estava ali um pequeno garoto, nariz escorrendo, pescoço coberto por um grande cachecol que quase o afogava. Depois de observar o capitão à distância, aproximou-se do navio e sem hesitar subiu as escadas para dentro. Admirou tudo ao seu redor. Sorriu sozinho. Sonhou para dentro.

- O senhor pode me levar consigo? – perguntou sem olhar para o capitão, ainda admirando tudo o que via.

- Fala comigo ou com o mar? – respondeu o capitão, igualmente sem olhar para o capitão.

- Com o senhor... eu acho.

- Não posso te levar. Não sei para onde vou.

- Não me importo, gostaria de ir mesmo assim.

- Não posso te levar, pois provavelmente eu não voltarei.

O garoto abriu a boca para responder prontamente, mas um fio de medo e responsabilidade perpassou sua mente antes que pudesse pronunciar qualquer palavra. Deve ter pensado em seus pais, sua casa, seus amigos. Tinha o sonho de desbravar o oceano, mas... havia tantas implicações. Antes que pudesse responder, calou-se. Acho até que se entristeceu. Silenciado, permaneceu admirando, mas agora era um admirador distante, alguém que acha belo e só, sem querer possuir.

- Acho que não vou, então. Ainda tenho algumas coisas para fazer por aqui – disse com voz inocente.

O capitão sorriu e olhou carinhosamente para o garoto. Reconheceu nele a criança que fora um dia. Imaginou quanto de vida poderia ensinar a ele.

- Ainda há muitas coisas a serem feitas, não tenho dúvida. Quando elas estiverem prontas e você não tiver mais com o que se preocupar e se nos encontrarmos por aí... – calou-se. Não espere que não haja mais nada a ser feito. Quando achar que é hora de seguir viagem, vá.

- Certo. Eu acho.

- Você sabe qual a maior invenção da humanidade, garoto? – o capitão continuou andando pelo navio, arrumando algumas poucas coisas. De onde estava, tinha que gritar para se fazer ouvir.

- Não – o garoto gritou de volta.

- É o sonho – ouviu como resposta o capitão gritar. – O sonho é a maior invenção da humanidade. Foi quando começamos a sonhar que passamos a saber o que queríamos no mais íntimo de nosso ser. O sonho pode ser transformador e encorajador, mas também pode ser uma grande prisão se não houver algo muito importante dentro de nós.

Fez-se silêncio enquanto o capitão voltava para próximo do garoto. Abaixou-se para ficar da sua altura e, com as mãos em seus ombros, olhou firme para o pequeno e continuou o seu sermão:

- Ousadia! É preciso haver ousadia para que um sonho não se torne uma prisão. Vê, o tempo hoje não é o melhor para se navegar. Virá uma grande chuva que me dará muito trabalho. O mar não está calmo, as condições são adversas. Eu posso ficar sonhando em seguir viagem por conta disso tudo ou posso ousar e realizar o sonho de partir.

- Você já foi ao mar muitas vezes. É mais fácil ousar assim, não é?

- Talvez. Mas eu não diria que já fui ao mar muitas vezes. Um verdadeiro marinheiro só vai ao mar uma única vez e de lá ele nunca volta. Ele apenas faz pequenas pausas em terra firme. E apenas quando precisa. A sua vida é o mar.

Os dois ficaram se olhando longamente até que o capitão decidiu que era hora de partir. Levantou-se e se despediu do menino bagunçando-lhe os cabelos. O garoto desceu do barco a contragosto, mas já estava suficientemente transbordando de emoções para continuar ali. Olhou o capitão sussurrar suas últimas palavras para o mar, imaginando que, de tudo o que já ouvira em sua vida, nada se comparava àquelas palavras. Deveriam ser belas e poéticas e encantadoras. Tão logo o capitão terminou de sussurrar, chamou a bordo a tripulação que aguardava em terra. Todos entraram, tomaram seus postos e o barco começou a navegar. Primeiro lentamente até ganhar velocidade e, aos poucos, distanciar-se no horizonte e aproximar-se do céu, onde haveria sempre mais um pouco de vida a ser deixada e de sonho a se alcançar.

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