terça-feira, 28 de julho de 2009

Sobre um segredo, uma viagem e um presente

É massa quando a inspiração vem!!!




O silêncio tomava conta da grande sala. Enormes estantes erguiam-se até o teto, abarrotadas de clássicos, épicos, aventuras, romances, quadrinhos... Longos corredores se formavam entre as estantes de livros e imensos espaços com mesas e cadeiras lotadas de leitores ávidos e curiosos eram preenchidas na medida em que a manhã avançava.

Por volta das 10h da manhã, enquanto o sol entrava pelas frestas de duas grandes janelas no fundo da biblioteca, o abismal silêncio foi interrompido por um baque na porta de entrada. Um menino acabara de entrar correndo. Seu tênis friccionava e chiava a cada passo. Os pedidos de silêncio multiplicavam-se inutilmente a medida que o garoto se esgueirava por entre os corredores. Visivelmente afoito, o menino corria e, de tempos em tempos, olhava para trás, como que preocupado em estar sendo seguido de perto.

Com suas pernas miúdas, ia dando passos cada vez mais rápidos, quase tropeçando. Entrou no corredor de enciclipédias. Parou um minuto e analisou o ambiente em que estava. Olhava para um lado e para outro, como que procurando algo escondido. Não encontrando o que procurava, olhou apressadamente para a entrada do corredor e continuou correndo. Não havia se dado conta de que estava em ambiente onde crianças não devem fazer barulho, sequer deveriam entrar. A biblioteca era lugar de saber, introspecção e conhecimento. Não havia tempo para brincadeiras de muleques ali.

Não se dando conta disso, desatava a correr sempre que não encontrava o que procurava em um dos corredores. Um senhor de oitenta anos, de óculos redondos e cabelos grisalhos desgrenhados, olhou de soslaio quando viu o menino passar, atormentado pelo que parecia ser um fantasma a persegui-lo. Rapidamente, contrariando as leis que dizem que idosos não têm reflexo e velocidade, virou-se e agarrou o garoto com um só braço e o trouxe para perto de si.

O menino, assustado, soltou um grito que foi rapidamente abafado pela mão livre do velho. O homem levou o garoto para um corredor vazio. Se alguém visse os dois naquele momento, certamente diria que a imagem era digna de uma pintura, grande obra de arte: entre duas imensas estantes cheias de livro, um homem idoso, de suspensório e calça marrom, camisa xadrez e sapato batido, segurava um menino com um braço e tapava sua boca; o menino, cabelo cortado como índio, olhos puxados, camisa azul lisa, short e tênis levemente rasgado, debatia-se com vigor. O sol que entrava pela janela iluminava exatamente a figura dos dois.

O menino se debatia nos braços do velho, e sua boca tentava, em vão, mordiscar um pedaço da mão daquele homem que aparentemente o agredia. Enquanto segurava o menino, o velho falou em voz baixa ao pé de seu ouvido.

Menino levado, criança mimada,
Aqui nesta sala, não se pode gritar.
Mas não se assute, menino, não se espante com nada,
Você é bem-vindo se quiser viajar!


Ao ouvir essas palavras, como que por encanto, o menino se acalmou. De certo, não esperava ouvir uma canção de um velho que aparentemente queria lhe matar (isso na cabeça do menino). Além disso, as últimas palavras atingiram seus ouvidos como uma grande surpresa: "Você é bem-vindo se quiser viajar". Aquele velho certamente estaria senil. Até onde sabia o garoto, entrara em uma biblioteca, e ali o máximo que poderia fazer era dormir. De qualquer forma, sempre gostara de viajar, e não custava tentar entender o que ele queria dizer.

Aquietou-se para que o senhor o deixasse falar. Antes de dizer qualquer palavra, respirou profundamente algumas vezes para descansar.

- Viajar? Para onde? - disse em voz não muito baixa, ainda arquejando de cansaço.
- Hey, garoto. Psiu!!! - disse o velho, dessa vez sem usar rimas e canções. Você não pode deixar que os outros ouçam o segredo que vou lhe contar.

Os olhos do garoto se arregalaram ao ouvir a palavra segredo. Certamente, teria muito o que contar a seus amigos quando voltasse para sua rua.

- Mas antes de contar-lhe qualquer coisa, quero saber se merece meu presente.

Ok. Passada a excitação do primeiro momento, o garoto finalmente chegara à conclusão de que o velho estava de fato maluco. Primeiro, falou em viajar numa biblioteca; depois, falou em segredo; agora, não era mais segredo, e sim presente.

"Os adultos sabem como decepcionar uma criança", pensou.

O velho, por sua vez, ria por dentro, percebendo a rápida mudança de humor da criança: de assustada a interessada, de interessada a fascinada, de fascinada a decepcionada. "Assim somos todos, até aprendermos a controlar sentimentos e emoções para que possamos aproveitar o momento presente sem nos desgastarmos. Ah, criança, um dia aprenderá que nenhuma emoção momentânea vale mais que um trabalho árduo, construído aos poucos com as próprias mãos, em prol de um grande ideal", filosofou consigo mesmo. "Mas por ora", pensou, "deixe que a alegria e o medo sejam seus guias".

O garoto olhava atônito para o velho, enquanto ele se perdia em pensamentos. Quando deu por si de que o garoto continuava em sua frente, perguntou-lhe:

- O que está fazendo aqui?
- Escondendo-me - respondeu tímido, sem encarar a face de quem o questionava com medo de ser represado.
- Escondendo-se de quem?
- De meu colega.
- Por quê?
- Estamos brincando. De pique-esconde.
- E você veio se esconder em uma biblioteca?
- É! Ótima idéia não é? - animou-se o menino. Ontem ouvi ele dizer que não entraria em uma biblioteca nem em um milhão de anos. Então, acho que hoje vou ganhar o jogo.

O garoto sorria ao contar sua grande ideia. O velho fez cara de interessado. Disse:

- Parece que você passou no teste - sorriu largamente. Mas, antes de contar-lhe meu segredo, vou ajudar-lhe em seu jogo. Topa?
- Sim, sim! Estava procurando um espaço entre os livros para eu poder me esconder. Se ficar no meio de um corredor alguém pode querer me tirar daqui.

A última frase foi dita num sussurro quase inaudível. Durante a conversa o garoto continuava olhando para todos os lados, temendo ser encontrado por seu amigo, apesar da grande ideia.

O velho segurou o garoto com as duas mãos, e novamente sussurrou em seu ouvido, olhando para os lados, fazendo como quem não queria ser ouvido por mais ninguém.

- Você procurou mal um esconderijo. Vou levar-lhe a um lugar onde poderá se esconder pelo tempo que quiser. Ninguém lhe achará.

Segurou o garoto pela mão e foi andando por entre os livros e estantes. O menino olhava ansiosamente para a porta de entrada sempre que saíam de um corredor para outro. Começou a perceber que se distanciavam dela. Pela primeira vez reparou no lugar onde estava. Enquanto caminhavam, reparou o piso de madeira, as estantes gigantes, as luminárias antigas e mesas rústicas. O que mais o impressionava era o tamanho dos quadros pendurados nas paredes verdes-claras.

Quando passavam ao lado de uma mesa onde um jovem aluno debruçava-se diante de dois grandes volumes de Corpo Humano (o garoto deduziu o livro pelas figuras que viu nas páginas abertas), a porta de entrada abriu-se de sopetão. Assustado, o garoto apertou a mão do velho e ameaçou recomeçar a correr. Mas fora apenas um alarme falso. O garoto suspirou aliviado e continuou a acompanhar o velho.

Entraram em uma nova sala, com almofadas e tapetes coloridos. O ambiente era bastante claro e as estantes pequenas. O garoto começara a achar que seguir o velho não era boa ideia. Aquele local era o mais claro da biblioteca, e o ambiente mais espaçoso proporcionaria maior facilidade de visualização caso seu amigo chegasse até ali. Percebendo a sutil insatisfação do menino, o velho comentou:

- Não pense que simplesmente lhe deixarei aqui. Tenho um grande esconderijo. Continue me seguindo.

Na medida em que andavam pela nova sala de tapetes coloridos, o garoto ia lendo os títulos e observando as figuras dos livros depositados na estante.

João e o pé de feijão; A Branca de Neve e os Sete Anões; Saci Pererê e o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Já ouvira falar de alguma dessas histórias; outras já vira na televisão. Apesar disso, as imagens impressas nas capas chamavam-lhe a atenção e atiçavam-lhe a imaginação. "Como será viver na floresta do Mogli? O saci deve perder todas as corridas. Volta ao mundo em 80 dias? Que legal!!!" Cada título e imagem tiravam-no do sério. A pressa anterior foi substituída por um desejo de permanecer naquele local e continuar dando asas a sua imaginação. Seu passo foi perdendo a velocidade. O velho acompanhou-o na desaceleração. Aproximou-se de uma estante e pegou um exemplar de "Vinte mil léguas submarinas". Entregou-o para o garoto e disse:

- Sabia que no fundo do mar existem monstros terríveis?

Inicialmente o garoto assustou-se, mas ao ver a capa do livro e um imenso monstro marinho desenhado, ficou curioso e abriu o livro em buscas de outras figuras. Não encontrou e se decepcionou.

- Calma, menino, não se apresse,
Não coma agora, antes da prece
- disse o velho em tom de canção.
- Disse-lhe que te mostraria um esconderijo. E vou fazê-lo.

Momentaneamente o garoto voltou a si e se lembrou da brincadeira. Continuou seguindo o velho e deu de cara com uma escada em caracol.

Tão absorto que estava com os livros chamativos, não percebera a escada bem no meio da sala. Agora que estava ao pé da escada, olhou e percebeu que ela termiva em uma porta no teto. Um sótão! Lugar perfeito para se esconder.

O homem idosos olhou sorridente para o garoto. O menino lembrou-se rapidamente de conselhos da mãe que diria para não confiar em estranhos. Mas o velho era tão simples e simpático, que conquistara a sua confiança.

Antes mesmo que o velho desse o primeiro passo, o menino subiu correndo pela escada, fazendo barulho e quase caindo em um dos degraus. Acompanhando-o, o velho subiu devagar, enfiando a mão no bolso e tirando um imenso chaveiro com inúmeras chaves. Cada chave possuía um desenho peculiar e, em geral, antigo. Ao chegar no topo da escada, o velho abriu o sótão.

O garoto esperava encontrar ali um lugar empoeirado, abafado e sem luz. Em vez disso, encontrou um lugar claro, limpo e com outras tantas estantes de livros. O chão do sótão estava cheio de papéis e lápis de cor. Nos papéis, desenhos diversos, visivelmente de crianças como ele. Entrou devagar e com olhos brilhando. Percebeu que do teto pendiam dragões, foguetes, bonecos sorridentes, princesas, cavalos e seus cavaleiros, entre tantas outras coisas, que nem ele mesmo conseguia observar todas. Olhava para o teto, fascinado, querendo possuir cada um daqueles brinquedos que lhe chamavam tanta atenção. Todos aqueles personagens esculpidos ou desenhados, apesar de estáticos, pareciam ter muito mais vida e vigor que os muitos desenhos que assistia na televisão. Pareciam ter saído de um mundo cheio de aventuras e de magia.

Desatento, tropeçou em um lápis de cor e quase caiu. Virou-se para o homem que o levara até ali. Queria pedir um daqueles brinquedos, mas sentia-se tímido. Diante de seu silêncio, o velho falou:

- Está fascinado?

O garoto apenas meneou a cabeça, afirmativamente.

- Percebi que gostou bastante desses brinquedos. Quer um deles?
- Aham. Quero.
- Pois vou dar-lhe muito mais que um deles. Voudar-lhe todos, e quantos quiser.

A essas alturas, o garoto já havia esquecido o pique-esconde, e estava incrivelmente animado com a ideia de ter todos aqueles brinquedos.

- Quantos eu posso pegar? - perguntou, perdendo a timidez.
- Nenhum! - respondeu severamente o homem. Ora, esses bonecos pertencem a este lugar e daqui não sairão - completou, e com ar de mistério, olhando profundamente nos olhos do menino, disse - Mas... quero que por ora escolha apenas um, para que eu possa lhe dar tudo o que lhe prometi: a viagem, o segredo e o presente.
E descontraído completou: - Não necessariamente nesta ordem.

Somente agora o menino lembrava-se daquelas promessas. Animado, começou a olhar uma por uma as figuras presas a fios que as ligavam ao teto. Algumas delas rodavam de um lado para o outro; outras permaneciam fixas estando presas por vários fios.

Um grande barco aqui; um menino em sua vassoura (essa ele conhecia, era o Harry Potter); um marinheiro caolho com um arpão na mão; um pirata e seu fiel papagaio no ombro; um boneco de madeira de nariz grande; fadas; duendes; um simples anel com inscrições que ele não conhecia...

A sala era grande e os bonecos que voavam eram muitos! Vez por outra, os olhos do menino descansavam em um ou outro boneco que lhe chamava mais atenção e se perguntavam de que história eles teriam saído. Quisera conhecer os lugares por onde andaram os duendes, gostaria de ter voado com as fadas, ou explorar os oceanos explorados pelos tripulantes do navio.

E o menino continuava, olhando demoradamente cada brinquedo. Até que seus olhos esbarraram em um simples amuleto. Um amuleto de cobre velho em que duas cobras se entrelaçavam, e cada uma abocanhava o rabo da outra. Seus olhos eram pequenos rubis vermelhos. De uma forma quase mágica, o menino se sentiu atraído por aquele simples objeto. Ao lado dele, uma espécie de dragão branco e peludo olhava ameaçadoramente em sua direção.

- Aqueles dois! - disse o menino, apontando para o medalhão e o dragão, sem se atentar de que estava escolhendo dois e não um brinquedo.
- Hmmmm. Interessante - disse o velho, ajeitando seus óculos com o indicador direito e abaixando-se para falar com o menino. E muito curioso!!! Você escolheu dois, e sem saber, dois que pertencem a um mesmo lugar. E acho que a escolha não poderia ser melhor... sem dúvida, não poderia ser melhor.

O velho levantou-se e foi até uma das estantes. O garoto observava-o, coração pulsando forte, sem saber o que o aguardava. Um presente, uma viagem e um segredo! O que seriam? E o que os brinquedos teriam a ver com isso? Ele observou a letra M gravada em ouro na estante em que o velho aparentemente procurava um livro.

- Melissa, Miguel de Cervantes, Michael... aqui... Michael Ende. - dizia de si para si o velho. E virando-se rapidamente para a criança, gritou triunfante:

- A História sem Fim!!! - levantava um livro em uma mão, enquanto a outra contorcia-se levemente como se segurasse uma pequena bola de cristal. Limpou com a manga alguma poeira que por acaso havia na capa e entregou o livro ao garoto.

Um livro de 200 páginas! Nunca lera tanto. Na capa cor de cobre do livro, o amuleto que escolhera estava desenhado em cor de ouro. O menino folheou algumas páginas, inicialmente com pressa, e depois calmamente. Cada figura no livro era um imenso convite para entrar naquele mundo. Árvores com pernas e bocas, um menino em um cavalo, uma torre enorme e fina... E um grande dragão voando pelo céu. Agora o menino entendia a ligação entre a escolha do brinquedo e... o segredo? a viagem? o presente? O presente deveria ser o livro, mas e o resto?

De qualquer forma, o menino não se importava tanto mais. Sentia uma necessidade urgente de começar a ler o livro. Sem pedir permissão ao velho, sentara-se em uma almofada que havia no chão, abriu a primeira página e começou a leitura.

O velho sorria, vendo o atento menino começar a entrar no fantástico mundo de FANTASIA. Que escolha fascinante ele fizera!

Acabara de presenteá-lo com uma passagem só de ida para uma das maiores viagens que o menino faria em sua vida. Quem sabe, faria tantas e tantas outras.

Conheceria mundos incríveis, viveria aventuras de tirar o fôlego, conheceria pessoas maravilhosas, mentes brilhantes, heróis e vilões. E guardaria para si um grande segredo, que apenas aqueles que dão asas à sua imaginação conhecem e acreditam: "Quem imagina pode viajar quando quiser".

3 comentários:

  1. "Os adultos sabem como decepcionar uma criança"...
    ;p
    Brilhante o conto!
    (saudades amigo...)

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  2. Eu escolho o anel... hehehe

    Fiquei curioso, agora quero ler a História sem Fim!

    Gostei do texto! Parabéns, Miguel!

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