sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sobre o medo do porão escuro

Na escuridão do arquivo, Marcos e Ronaldo se mantinham isolados do convívio com as pessoas do mundo de cima. Raras vezes algum servidor aparecia para pegar um dossiê ou entregar algumas pastas. Sem exceção, todos que passavam pelo arquivo se impressionavam com a falta de salubridade do ambiente e comentavam com ambos: “Vocês precisam de um lugar melhor para trabalhar. Aqui é barulhento, escuro e cheio de poeira. E há muita bagunça. Quem sabe não combinamos com o pessoal do departamento para vir até aqui ajudá-los um pouco”. Sem exceção, a promessa ficava por ser cumprida.

O arquivo deveria parecer para todo o departamento um lugar de pavor e sofrimento. Nos primeiros dias de trabalho, uma das melhores distrações de Marcos era observar a reação de servidores ao saberem que trabalhava no arquivo. Numa manhã de quinta-feira, por exemplo, Marcos subiu ao subsolo – lembre-se que ele trabalha no subsolo do subsolo – para encher uma garrafa d’água (banheiro e água? Só no andar de cima). No corredor do filtro, o garoto encontrou uma servidora, Bianca, que estranhando sua presença perguntou:

- Você é novato aqui?
- Sim – respondeu sorridente o garoto.
- Ah! É que não te vi por aqui ainda. Aí, imaginei que fosse novato.

- Ah, pois é. E não me verá de novo. Estou tão escondido, mas tão escondido no arquivo, que mesmo que eu tivesse três meses de serviço corria o risco de você nunca ter me visto – diria ele.
Marcos imaginou o rosto da mulher ao ouvir isso. Seria uma cara de constrangimento e piedade. Seria legal dizer algo do tipo, mas ainda não se sentia na liberdade de fazê-lo. As pessoas do lá de cima poderiam não ser muito receptivas às piadas do submundo.

Ao invés disso, apenas respondeu:
- É. Estou aqui no departamento há apenas três dias.
- Ah. Seja bem-vindo!
- Obrigado!
- Você está trabalhando em que setor?

Eis a chance! Ele já havia experimentado a decepção e pena de algumas pessoas ao ouvir a resposta a essa pergunta. A seqüência de atos que se seguiriam à resposta era sempre: mudança de expressão repentina, aparentando dor e insatisfação, depois, a tentativa forçada de disfarçar a expressão com um sorriso forçado e palavras do tipo: “Que legal! Espero que esteja gostando!”. Era engraçado ver isso.

Para que a resposta surtisse mais efeito dessa vez, Marcos juntou a ela uma expressão de desânimo:

- Estou no arquivo, com o Ronaldo – disse, abaixando a cabeça, como quem está envergonhado ou inferiorizado.

Dito e feito! Bianca abaixou os olhos, contorceu os lábios. Uma lágrima ameaçou escorrer de seus olhos azuis. Conteve-se. Esmerou-se por mostrar o sorriso mais amarelo que já dera. E falou, num misto de voz embargada com animação disfarçada:

- Que legal! Espero que esteja gostando!

Marcos permaneceu calado por uns instantes.

- Não! Não estou gostando! – diria num misto de choro e raiva. Aquele lugar é escuro e barulhento. É frio, sabia? Lá é muito friiiio, Bianca. Não tem sol! O ar não se renova. Não dá pra respirar direito – falaria, colocando a mão sobre o pescoço, imitando um homem sufocado. Mas tudo bem, eu agüento.

Obviamente, não disse nada disso. Não sabia até onde iria o humor das pessoas lá de cima.

- É. Até que estou. É bem tranqüilo, lá.
- Que bom. Ok, vou indo. Precisando de ajuda é só chamar. Trabalho no RH – e saiu apressada, sentindo-se intimidada.

- Ah, que sorte a sua. Deve ser bem iluminado e deve ter bastante gente com quem conversar no RH. Vai lá, boa sorte.
Obviamente, isso ficou só na imaginação.

Os caras da informática eram outros que pareciam temer o buraco. Enquanto Marcos não foi até eles e pediu insistentemente para que instalassem um computador em sua mesa, ninguém desceu. Após uma semana de trabalho, sem computador e internet, Marcos foi até a informática, pela terceira vez, para reivindicar seus direitos. Assim que entrou na sala, os três homens giraram suas cadeiras de rodinhas para a porta. Ao depararem com aquele figura desconhecida e alta, entreolharam-se como que se perguntando:

- Quem é esse cara?

- Oi. Eu sou o Marcos do arquivo. Queria que vocês instalassem meu computador e internet.

Os três se entreolharam novamente. Dois deles adiantaram-se em voltar para suas telas. O outro, respondeu:

- É... então... vou lá. Daqui a pouco.
- Ok, estarei lá embaixo esperando – respondeu Marcos impaciente.

Só no dia seguinte apareceram. E foram os três, para fazer o serviço de um. Enquanto um fazia o serviço, os outros o apressavam. Marcos e Ronaldo acompanharam a cena achando graça.

Por incrível que pareça, os dois gostavam daquele buraco. Era sossegado e com pouco serviço. Além disso, os dois se divertiam bastante conversando sobre a situação precária em que se encontravam. Sossegados, escrevendo, lendo, estudando e contando piadas. Assim passavam os dias.

Se Marcos e Ronaldo matassem alguém naquele buraco – por buraco entenda-se a sala na garagem do anexo do anexo do MS –, dizia, se eles matassem alguém naquele buraco e escondessem o corpo em um daqueles armários, ninguém saberia por dias, talvez meses, do ocorrido. Por certo dariam por falta da pessoa perdida, mas jamais a procurariam por lá.
Essa ideia os absorveu...
MUAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHA
Continua...

2 comentários:

  1. Acho um bom momento para ler "Todos os nomes" do Saramago

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  2. Ó céus...
    O que será do meu amigo. Já está endoidecendo.
    Tb... pudera!
    Gabióloga.

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