sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Sobre um Semeador de Estrelas

Quando acordou, permaneceu em silêncio e de olhos fechados. Não queria voltar à realidade. Percebia o quarto ligeiramente iluminado, e o silêncio só era rompido por uma fraca respiração vinda próxima de sua cadeira de trabalho.

Abriu os olhos lentamente. Deixou os raios solares adentrarem sua retina. A luz dourada que entrava pela janela permitiu-lhe visualizar as pequenas partículas de poeira flutuando e dançando no ar. Desviou a vista para a cadeira e o encontrou.

Não entendeu por que não teve medo. Não entendeu por que seu coração sequer pulsou mais forte. Apenas olhou para o homem à sua frente - careca, alto, relativamente forte e de olhar distante - e soube que não era preciso temê-lo. O homem vestia roupas de camponês, seus olhos eram prata, penetrantes, envolvidos por uma órbita profunda. Em sua perna esquerda jazia um pequeno cesto, sem alça, seguro por sua mão esquerda.

João permaneceu em silêncio. O homem olhou profundamente em seus olhos. Paz. Essa era a melhor palavra para expressar aquele momento.

João não sentia nenhuma necessidade de começar um diálogo, pedir explicações... apenas aceitava estar ali, mas sabia que de nada adiantaria ficar parado. Então, perguntou:

- Você é a Morte?

Não havia pensado nessa pergunta. Apenas achou que seria a mais adequada para o momento.

- Alguns me chamam assim.

- Então, eu morri? - pela primeira vez João receou, mas continuava em paz.

- Morremos todo dia, João.

A voz do camponês era grave, proporcional à sua aparência de homem feito, mas ao mesmo tempo era tímida, ou cansada... Não sabia bem.

O silêncio tomou conta do quarto. João não tinha mais palavras. Não entendera a resposta e simplesmente não tinha mais perguntas.


O momento se estendeu por vários minutos: João sentado em sua cama e o homem na cadeira, fitando-o. João pensou em ver as horas, mas a ideia lhe pareceu ridícula. Ele sabia - apenas sabia - que o tempo estava parado.

Finalmente o camponês decidiu romper o silêncio.

- Você está pronto?

Normalmente, João perguntaria: "Para quê?", mas da mesma forma como soube que o tempo parara, soube que iriam fazer uma viagem, novamente. E soube que no sonho anterior havia sido guiado por aquele homem.

- E então? - perguntou o camponês.

- Vamos - respondeu determinado e levantando-se.

Antes que João pudesse fazer o primeiro movimento para fora da cama, a sensação de vôo e liberdade tomou conta de seu corpo mais uma vez.

Tudo era novamente escuro, exceto por uma luz prateada que vinha do camponês à sua frente. Ele estava de pé, flutuando com uma perna à frente da outra, como se estivesse dando um passo. Segurava o cesto com a mão esquerda, enquanto levava a mão direita até a boca do cesto para retirar um pó dourado.

João se pôs ao lado dele e observou. O camponês soltou o pó de sua mão, que caiu por muitos metros, dispersando-se. Via-se apenas pequenos brilhos dourados. Até que o pó começou a se aglomerar e a crescer e ali nasceu uma estrela, pequena, mas brilhante.


- Quem é você? - a pergunta apenas saiu de garganta de João.


- Vocês me chamam de Morte. Isso é porque se preocupam comigo apenas nesse momento. Mas eu sou também a vida.


- É Deus?


- Apenas um anjo seu, encarregado de dar e tirar a vida.


Enquanto conversavam o camponês continuava semeando suas estrelas. O lugar em que estavam - se é que aquele lugar existia em algum lugar - começou a ficar bem iluminado. João se sentia no meio de uma grande luz!


- Vocês me chamam de Morte, mas eu sou o Semeador de Estrelas. Sou também o Ceifador, mas gosto mais de semeá-las.


- E o que são essas estrelas? As que vejo no céu a noite?


- Não. São suas vidas. São vocês. Este é o lugar em que brilham no tempo entre a vida e a morte, a aurora e o ocaso. No momento estou semeando belas estrelas, não acha? São algumas das mais brilhantes que já vi. Nenhuma delas famosa, nenhuma delas de sucesso segundo os seus padrões, mas todas elas muito bonitas. Veja esta aqui. É uma mulher. Será uma linda criança e fará muito bem a seus pais.


- Você sabe de todas as histórias? De todas as vidas? Sabe de todo o futuro?


- A cada anjo é dado conhecer a parte da mente de Deus que lhe pode ajudar em sua missão.


Anjo, mente, Deus. Palavras que outrora soavam tão abstratas para João e agora ouvia alguém dizê-las com uma naturalidade jamais sonhada. Pela milésima vez, perguntou-se se não estaria sonhando. Ainda que estivesse, não se daria ao trabalho de acordar. Tudo ali o fascinava.


- Eu teria muitas perguntas para fazer sobre Deus, mas imagino que você não vá me respondê-las, estou certo?


- Sim. Não é este o propósito dessa viagem.


João esperava exatamente esta resposta. Sabia que a viagem teria um propósito, e estava ansioso para conhecê-lo, mas não custava postergar e tentar tirar um pouco de suas curiosidades.


- Por que Ele se esconde? Parece uma falta de transparência. Há necessidade? - perguntou, em tom calmo, para não parecer desesperado em obter respostas. Isso poderia intimidar o Semeador. Anjos se intimidam? - questionou-se.


- Ele se deixa encontrar. É isso que importa.


A resposta foi recebida como um tapa em seu rosto. Ele se deixa encontrar. Ele se esconde, mas se deixa encontrar. João refletiu um pouco nessas palavras. Não se importava que o tempo passasse, não havia tempo naquele lugar. Talvez seja como um pai e um filho brincando de pique-esconde. Mais cedo ou mais tarde, o pai sempre deixa o filho encontrá-lo. Ele se deixe encontrar.


A mente de João trabalhava a mil por hora. Em sua cabeça havia muitas imagens, perguntas, rancores, dores, arrependimentos dos quais gostaria de obter esclarecimentos.


- Há uma resposta para cada uma delas, João. Tenha certeza disso - disse o Semeador, cortando-lhe o pensamento.


- O quê?


- Você estava prestes a me dizer que tem muitas perguntas, angústias, e até reclamações que gostaria de entender melhor. Há uma resposta mais que satisfatória para cada uma delas. E é isso que importa. Você não precisa obter todas as respostas, só precisa confiar que elas existem. Por enquanto, pelo menos.


O coração de João saltou-lhe do peito. Sentiu que passava a compreender um pouquinho do coração de Deus. E isso o estranhava e o fascinava. Estava irrequieto, satisfeito... uma mistura de emoções...


- E o fato de eu saber que você faria a pergunta não lhe tira o livre-arbítrio, antes que você pergunte. O fato de Deus saber de toda a sua história antes mesmo que você nasça, não faz com que as suas escolhas sejam menos suas. São suas escolhas, e são legítimas, Deus apenas se dá o direito de conhecê-las antes de você as praticar.


- Tudo bem, então.


João não conseguiu absorver muito bem a última parte da conversa, mas sabia que havia entendido a mensagem.


- Agora venha, João. Vamos continuar o passeio que paramos antes de você acordar...


Os dois foram transportados para o meio do espaço, onde novamente tudo era silêncio, movimento e luzes de estrelas. A sensação de imensa pequenez assaltou-lhe mais uma vez. A grandeza daquela pequena parte do Universo era incalculável. A beleza de tudo o que havia em volta, inefável. E tudo passou a se movimentar em velocidade acelerada. O Semeador mantinha-se calmo à frente de João. Até que os dois pararam e o Semeador apontou-lhe para um pequeno ponto no meio do espaço:


- Que é aquilo, João? Qual a importância daquele pequeno ponto no meio da imensidão do Universo?

Lembrou-se da pergunta feita no sonho. Que é sua vida ante tudo isso. Lembrou-se do quanto se sentira pequeno, ínfimo, sem importância.

E agora o Semeador lhe perguntava a importância de um pequenino planeta e João pensava que não havia a menor importância ali. E sem nem mesmo um planeta tem importância, qual seria a dele? Certamente nenhuma.

- Aquilo me parece um pequeno planeta. Aparentemente sem nenhuma importância.

O Semeador sorriu. Olhou bondosamente, com seus olhos prateados - Que olhos são esses?, pensou João -, e com voz grave e confiante disse:

- Aquilo é a Terra. Sua casa, seu lar - respirou fundo, virou seu olhar para o pequeno ponto azul e contemplou-o por uns instantes.

João sentiu que o Semeador se emocionara. Por que um anjo que semeia vidas se importaria com aquilo? Ainda não entendia.

- Ali as coisas se movem, João.

- Tudo nesse Universo se move não?

- Pelas leis da física. Por causa da gravidade. Mas ali, João, as coisas se movem por que tem vida. Ali há vida! E isto é a maior de todas e todas as obras do Criador. Vida! De que adiantaria todo o Universo se não houvesse quem contemplar? De que adiantaria tanta exuberância, se tudo fosse apenas o que é, inanimado...

O Semeador virou-se novamente para João. Segurou seus ombros com as mãos. Colocaram-se frente a frente. O Semeador aproximou seus olhos dos de João. O rapaz podia ver claramente dentro dos olhos do anjo. Eram como uma janela para outros lugares. João pôde divisar pessoas, árvores... Ele estava vendo a vida acontecer nos mais diversos tempos e lugares em que a humanidade viveu. Assustou-se com algumas imagens e desviou o olhar.

- Olhe, João - disse o anjo apertando-lhe levemente os ombros. Não tema.

João olhou novamente. As imagens agora eram tranquilas e traziam uma grande paz. Dois amigos se abraçando; um casal de namorados se dando a mão; um parto sofrido e o sorriso da mãe; um órfão recebendo alento; milhares de jovens reunidos gritando por paz; crianças se divertindo em um parque...

- Vê, João. Esta é a verdadeira grandeza do Universo. Não é grande em tamanho, não é exuberante ou chamativa. Deus tem um grande tesouro, João. E grandes tesouros nós escondemos. Ele decidiu esconder o seu silenciosamente entre pequenas criaturas, de um pequeniníssimo planeta que gira em torno de um sol de quinta grandeza, em uma galáxia igual a bilhões de outras galáxias. Tudo o que você viu Universo a fora apresenta a grandeza, magnanimidade e perfeição de Deus. Mas o que você viu em meus olhos, o que você vive a cada dia em sua vida, é onde Deus demonstra o seu maior atributo. É no coração do homem que se vive o amor, João, e é no amor que Deus se deixa encontrar.

- E que é minha vida ante tudo isso? - perguntou-se João.

- É mais que uma pérola preciosa na imensidão do oceano. É a expressão viva do mais íntimo do coração de Deus.

Um comentário:

  1. Quando eu olhei o tamanho, pensei: "vei.. o Miguel me paga!!!!"
    Mas AMEI o texto...vamos usar em alguma reuniao????
    =D

    Beijos

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