quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Sobre medo

Quando as luzes se acenderam no palco, e Bella se viu mais uma vez rodeada por dançarinos e observada por milhares de espectadores, seu coração quase saltou do peito.

Era a última apresentação da temporada, e o teatro estava lotado. Do pouco que pôde observar na escuridão da plateia, Bella viu olhares atentos e sorrisos prestes a se abrirem. Todos estavam encantados com a descoberta do novo talento que era a garota e ansiosos por ouvir sua voz doce e penetrante.

Assim que a orquestra começou, o elenco deu os primeiros passos, acompanhando o ritmo rápido e dançante da música. Andavam em círculos, davam giros no ar, homens levantavam as mulheres que se jogavam no ar fazendo piruetas a mais de três metros do solo. A multidão, atenta, apenas se concentrava na espera do momento em que Bella começaria a cantar.

Parada no centro do palco, o coração de Bella continuava a palpitar, forte e descontrolado. De repente, as luzes do palco se apagaram e acendeu-se uma, solitária, no centro, logo acima dela. Era a deixa para a sua entrada.

A garota começou a cantar. As notas soavam nos ouvidos dos presentes como pássaros voando lentamente num céu de verão. Enquanto cantava, novas luzes eram acendidas, revelando um cenário azul claro onde barcos alvo-prateados se movimentavam sobre uma névoa branca e pouco espessa.

Bella cantava, nervosa internamente, mas irrepreensível em sua apresentação, como deveria de ser. Entre uma nota e outra, seus olhos procuravam no meio da multidão de espectadores o rosto do homem que lhe fortalecia.

Ela não o conhecia, mas ele estivera presente em todas as outras apresentações bastante perto do palco, a ponto de poder ser visto pela cantora apesar da luz ofuscante em seu rosto. O desconhecido se limitava a olhar profundamente nos olhos de Bella durante toda encenação. Rosto impassível, olhar perdido nos infinitos distantes do olhar de Bella, ele apenas mirava a garota, e com ar de aprovação meneava a cabeça afirmativamente, como que para tranquilizá-la. Bella se perdia em seu olhos e, encantada pela força de seu olhar, ganhava ânimo para continuar a apresentação.

Ao final do primeiro show, Bella se inquietou ao perceber que não podia parar de pensar no homem. No segundo show, desejou ardentemente que ele estivesse presente. E estava. O mesmo ocorreu em todos os outros. E a cada espetáculo, esperava ansiosamente que ele viesse visitar seu camarim, mas ele nunca aparecia. O último show chegara, e o nervosismo já não estava na apresentação para uma multidão que já a idolatrava, mas na incerteza de poder um dia conhecer o dono do olhar tão penetrante e revigorador.

A medida em que o show se aproximava do desfecho, Bella se incendiava por dentro, chegando a quase perder o compasso e a afinação por diversas vezes. Em todos esses momentos, buscava furtivamente o homem. O fim estava cada vez mais próximo, era a última atuação. Iria ele atrás dela? Ou ela ficaria esquecida, apenas com o desejo ardente em seu coração? Se perdoaria por não ter tentado encontrá-lo, saber o porquê de encará-la tão profundamente todos os dias?

Pela primeira vez errou. Um erro grave e facilmente perceptível até para ouvidos desatentos. Em vez de consertar-se, visualizou no erro uma oportunidade. Deixaria tudo de lado.

Calou-se. A orquestra continuava e o maestro olhava nervosamente para a soprano, na expectativa de que retomasse o canto. Nada aconteceu. A garota se virou em direção do homem e andou até a borda do palco. Agachou-se. O homem e a garota se fitavam. O público não entendia, mas muitos achavam que tudo fazia parte do espetáculo.

O homem se levantou e estendeu a mão direita para a moça. Bella hesitou. Pensou em perguntar seu nome, o que fazia ali, o que queria, mas não foi capaz de emitir um som sequer. Havia magia em seu olhar, ela sabia. Pela primeira vez, deu-se conta de que a plateia começava a se inquietar. Com medo de que começasse uma confusão, apressou-se em dar a mão ao homem que lhe olhava com tanta vivacidade.

Sentiu o calor de sua mão e um arrepio instantâneo tomou conta do seu corpo. No mesmo momento, o homem puxou-a levemente e começou a andar em direção ao corredor lhes levaria para fora. Bella teve a brevíssima sensação de que começaria a voar. Teve certeza, por mais absurda que fosse, de que se continuasse andando com aquele homem de fato voaria.

Seu coração quase saía do peito e sua respiração estava ofegante. A garota ouvia o murmúrio da plateia e via a insatisfação no rosto do maestro. Teve medo e resistiu ao homem. Ele, aparentemente sem entender, parou e virou-se para Bella. Ela largou sua mão. Olhou para os espectadores ao seu lado e pediu para terem calma.

Enquanto o homem permanecia parado no meio do corredor olhando-a, a garota voltou para o palco, pedindo breves desculpas ao maestro. A música tornou a soar. A garota olhava tristemente para o homem. Ele meneou a cabeça e saiu.

Ela sabia que perdera a oportunidade de voar. Por causa de um medo bobo, tolo, faltou com o seu maior desejo. E voltou a cantar. E encantou a todos. E, enquanto cantava, doía-lhe a alma. E viu quando a porta de saída entreabriu-se, deixando vazar uma pequena luz que logo se apagou assim que se fechou a porta.

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