terça-feira, 17 de agosto de 2010

Sobre ser vivo

Sempre que podia, João - nosso intrépido João -, vestia uma bermuda quadriculada e sua camisa alaranjada, calçava as chuteiras e ... ia passear a noite, em volta da quadra. A cada três passos, João dava um pulo. Três passos e um pulo, três passos e um pulo, contornando a quadra várias vezes. Era sempre a mesma roupa, no mesmo horário, o mesmo percurso e os mesmos passos e pulos. João fazia disso um ritual, uma forma de manter sua mente jovem, como se a cada vez que repetisse o ato, voltasse no tempo para a primeira vez que o fez.

É meio estranho, eu sei, mas João não é daqueles que se pode chamar normal. Tampouco era louco, ou demente. Não! João era um cara normal... digo, um cara não tão esquisito a ponto de ser taxado de louco, e nem tão pouco estranho a ponto de ser normal. De qualquer forma, ele era apenas um cara comum. Do tipo de gente que você não repara na rua e que você demoraria uma semana ou duas pra reparar na sala de aula.

Mas tinha esse hábito estranho, muito estranho, que ninguém entendia. Quando ele explicava que era um ritual para manter a mente jovem, as pessoas normalmente levantavam a sombrancelha - uma só - balançavam a cabeça lentamente e diziam:

- Ah, sim! - faziam uma pausa e - Aham.

E daí, seguia-se um silêncio constrangedor. Constrangedor para os outros, por que João nem percebia e achava que a pessoa realmente havia entendido. Afinal, o que havia de mais naquilo?

De vez em quando, algum vizinho ou amigo tentava levar a conversa mais a fundo tentando dissuadí-lo de continuar com aquele "hábito idiota", como diziam. João ouvia as súplicas com atenção e, então, tornava a explicar o motivo da repetição daquela atividade. E a pessoa dizia que já havia entendido, mas que não fazia sentido e que era no "mínimo ridículo" e como era seu amigo tinha a obrigação de mostrar a ele que fazendo aquilo as pessoas olhariam para João e o taxariam de louco por que, afinal, pessoas normais não fazem esse tipo de blahblahblahblahblah...

E a ladainha continuava, mas João já não prestava atenção e, a esse tempo, estaria olhando para uma borboleta voando, ou pensando no que comeria no almoço de amanhã. É que João também não conseguia manter muito o foco em conversas desinteressantes, e sua mente rapidamente se desviava para algo mais importante, como o ritmo dos passos da criança do outro lado da rua.

João não se entediava do hábito. Muito pelo contrário, achava extremamente divertido e animador. Vez ou outra não tinha tempo e acabava terminando o dia sem fazê-lo, e aí sentia falta e era como se acordasse no dia seguinte extremamente cansado. Às vezes, também, se cansava da insistência das pessoas de que aquilo era algo idiota. Ele não se importava com as reclamações, mas se cansava delas. Era chato ter que repetir sempre, durante dezenas de anos as mesmas conversas. E João não entendia por que muitos só vinham falar com ele sobre isso.

Sabe-se que João repetiu o ritual durante muitas dezenas de anos, até ser um jovem bem velho.

Certa vez, ninguém o viu durante um mês inteiro. Foram, então, até a casa dele e bateram na porta insistentemente, mas ninguém atendeu.

Chamaram a polícia e entraram à força. Era a primeira vez que alguém entrava em sua casa, que era simples, bem simples. Tinha apenas o essencial para se viver, alguns quadros nas paredes. e retratos nas mesas de uma família que ninguém nunca vira. Sua cama estava perfeitamente arrumada e o quarto estava empoeirado, como se ninguém houvesse passado ali durante muitos dias. João mantinha na cabeceira de sua cama um caderno de anotações. Na capa estava escrito: "O câncer da sociedade: a rotina chata e enfadonha". Dentro do caderno, que era bem antigo, em todas as folhas estava escrito: hoje eu fiz a mesma coisa que ontem.

João não foi encontrado no apartamento, mas no espelho de seu banheiro havia sua última declaração para os tolos que não o entendiam:

"Às vezes, a única forma de saber que se está vivo é poder sentir o mesmo prazer que a criança inocente ao brincar: ela não se cansa; repete os mesmos jogos, mas com espírito sempre novo. A gente não morre quando os dias são iguais, mas quando perde a capacidade de senti-los".

Alguns dizem que João se cansou de sua vida monótona e decidiu viajar pelo mundo, vivendo altas aventuras. Eu não sei. Acho que meu vizinho João tinha muito mais para ensinar do que o que pude aprender com aquela frase. Hoje, imagino que ele esteja por aí, repetindo o mesmo ritual em algum canto do mundo, tentando fazer as pessoas entenderem que é melhor ser um louco vivo a um morto ambulante.

4 comentários:

  1. Migows e suas histórias repletas de sonhos simples e maravilhosos! =)

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  2. ...
    (Não sei o que dizer. Difícil explicar o sentimento que me veio.)

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  3. É ridículo?
    É idiota?
    Mas é você quem faz?
    Ah tah...
    Ser "ridícula(o)" me faz feliz! Então...
    Seja você feliz sendo normal, que eu sigo sendo feliz sendo um(a) idiota!

    ;)

    Ps.: há algum tempo numa conversa com minha mãe, ela me perguntou se eu estava feliz com meu namorado. Eu sorri, e disse: "Muito!" Fiz uma pausa e continuei: "mãe, com ele eu sou exatamente como sou, faço ou falo qualquer bobagem que me vem à cabeça sem a preocupação de ele me achar mongol! E isso pq ao invés de ele me censurar, entra na minha onda e aí a gente se diverte e ri mto da nossa própria cara!"

    ...

    Se alguma daquelas pessoas ao menos um dia tivesse dito: "João, hoje eu vou com vc!" Com certeza pelo menos aquele dia seria uma pessoa mais "leve".

    A gente sempre vai ter duas opções: rir de quem é feliz ou rir por também ser feliz.

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  4. ... e eu, sinto uma imensa inveja do João, ele não media esforços para ser ele mesmo.

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