quinta-feira, 25 de março de 2010

Sobre um grão

João estava sedento. Caminhara durante horas sob sol a pino, acompanhando o cortejo sangrento de Jesus. Ao seu redor, muitos olhavam, com asco e indignação, as cenas de tamanha violência sendo usada contra um simples homem. Outros tantos choravam amargamente e sentiam, como que em seus próprios corpos, as dores do profeta que muito lhes ensinara. Ainda alguns olhavam com euforia sanguinária para o homem jogado e maltratado, alegrando-se e divertindo-se com a punição a um herege.

João caminhava, com o coração na mão. Não chorava, pois não havia mais lágrimas. Apenas caminhava a uma distância segura, suficiente para que Jesus o visse e, com sua presença, se confortasse.

O homem que até então fora tão altivo e de falar autoritário, mas suave, agora caía por terra não uma, mas várias vezes, sob o peso de uma imensa cruz. O homem que amara a todos, e só fizera o bem, sofria agora a maior das dores, como punição. A jovem inteligência de João nada podia compreender.

À sua frente, cabisbaixa e silenciosa, seguia Maria, mãe de Jesus. Calada, olhar distante. Algumas vezes, João via Maria fechar os olhos com força, contendo um choro que insistia em sair. Algumas mulheres se revesavam nos cuidados daquela pobre mulher, sofrida nas dores.

Chegaram finalmente ao local da crucifixão. Jesus largou de uma vez a cruz e caiu de costas. "Por que, mestre, a carregou até aqui?" - perguntava-se o jovem, sem entender. "Quantas oportunidades de fugir. Quantas oportunidades de desdizer as duras palavras ditas, para não precisar sofrer as consequencias. Por que, mestre?". E o coração apertado de João se rompeu novamente em choro. Enquanto isso, Jesus respirava fortemente, deitado de costas, olhando para o céu. Era um homem completamente indefeso e destruído. Culpado por suas palavras e seu amor incondicional.

Soldados aproximaram-se do homem deitado e ferido. João os viu levantarem a Jesus e despirem-no de sua manta. Jogaram-no sobre a cruz e seguraram seus braços abertos e seus pés sobre um apoio. As dores de Jesus anteciparam-se na imaginação de João. Sabia o que aconteceria a seguir e doía-lhe a alma por antecipação. Imensos cravos traspassariam seus pulos e seus pés. Quanto dor sentiria o mestre. Quanta dor! As mulheres pararam perto do ensaguentado e ali o contemplaram. Jesus não as olhava, sequer abria os olhos. João olhava para a cruz com Jesus, e algo em seu coração disse que tudo estaria bem. Não compreendeu, mas confiou.

O jovem colocou-se ao lado de Maria, mãe de Jesus. Passou os braços sobre seus ombros e abraçou-a. Nesse mesmo momento, um soldado segurava o braço direito de Jesus e sobre seu pulso pendia um cravo e sobre o cravo, um martelo. A batida precisa ferira o pulso de Jesus e um grito incontido correu por sua garganta. Juntamente com Cristo, gritou sua mãe, escondendo o rosto no peito de João. Chorava. Chorava. João viu o sangue escorrer sobre o braço da cruz. "Por quê, meu Deus? Por que permitis tão grande sofrimento a um servo teu? Por que não o tiras daí e mostras teu braço forte?". Um nova batida pregou mais profundamente o cravo no madeiro da cruz. Jesus já não gritava, apenas cerrava os lábios e um gemido rouco escapava-lhe da garganta. Mais duas batidas e mais sangue escorreu. E João apenas olhava atônito, perguntando-se, sem entender.

Maria já não olhava para a cruz, mas tremia a cada martelada ouvida.

O outro braço agora era pregado à cruz. João fechou os olhos e tentou relembrar os bons momentos com seu mestre. Enquanto ouvia as batidas do martelo sobre o cravo e os gemidos de Jesus, João lembrava-se de seu discurso após a multiplicação dos pães. Lembrava de seu semblante, sorridente, que dizia ser o pão da vida, e que todo o que dele comesse teria a vida eterna. Palavras obscuras, mas que tocaram de forma concreta seu coração. Se sua carne seria comida e seu sangue bebida, este era o momento, pois o sangue escorria livremente para o chão, encharcando o solo e a cruz. E sua carne, de tão atingida, já se despedaçava.

Pregavam agora os pés de Jesus em um apoio da cruz. Depois de alguma dificuldade, levantaram a cruz e encaixaram sua haste vertical em um buraco no solo. Jesus pendeu solto, seguro apenas pelos cravos que lhe doíam os nervos. A respiração era difícil e João podia ver o olhar sofrido do mestre. Os olhos esbugalhando e recebendo sangue vertido de sua testa, cravada por espinhos.

Abaixo da cruz, encontravam-se os poucos seguidores de Jesus que o acompanharam até ali. João olhava para o alto, as dores do mestre se tornando as suas dores, o ar faltando-lhe assim como faltava ao crucificado. Buscava em sua memória lembranças de um passado agora infértil e sem luz. Olhava para o madeiro e Jesus ali pregado. A cruz lembrava-lhe uma árvore sem frutos e sem sombra. Seu olhar encontrou o olhar do mestre. Jesus fechou os olhos e os abriu lentamente. Fitou o olhar no olhar de João, o semblante de Jesus pareceu aliviar-se por um breve segundo, e João lembrou-se da visão que tivera no monte, com Pedro e Thiago.

Naquele dia, Jesus fora envolvido por uma grande luz, e Moisés e Elias conversavam com ele. João vira a glória de Jesus, mas não a compreendera. E agora, mais uma das palavras do mestre lhe vinha à memória: "Se o grão de trigo não morre... não pode dar a vida".

E aquele madeiro da cruz, que lhe parecia uma árvore infértil, transfigurou-se em um instante ante seus olhos. Nas feridas de Jesus, João viu a maldade dos homens, no seu sangue, encontrou a dor de amor de seu mestre.

E a cruz se tornou redenção.

E a esperança que lhe fora roubada retornou ao seu coração.

3 comentários:

  1. Melhor presente de aniversario que alguem poderia me dar. Amei seu texto, como sempre. (=

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  2. Miguelito, muito bom... realmente um ótimo texto para todos refletirem nessa semana.

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  3. Migows, linda meditação sobre nossa salvação! É como disse São Paulo, "porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus".
    Um grande abraço e uma semana SANTA e abençoada para você e toda sua famílai querida! =)

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