quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Sobre gritos, medo e mortes

Há certas coisas que acontecem sob o céu que nem mesmo os mais sábios podem compreender. Há criaturas que andam entre nós, alimentando-se de nossos medos, divertindo-se com nossos sustos, sem sequer serem percebidas pelos homens. O imáginário humano pode ir muito longe em suas invenções, mas jamais conceberá algo tão terrível e mortal quanto os monstros que verdadeiramente assombram essas terras.

Há cinco anos, a lua cheia anuncia o terror entre os habitantes daqui. Medo, pânico, morte. Não há janelas fechadas, portas trancadas ou portões protegidos que possam deter a criatura brutal que assombra nossa pequena cidade. Uivos ferozes e rosnados graves antecedem cada grito agudo e desesperado das vítimas. Sangue escoa, tiros são disparados e mais gritos de desespero são ouvidos pelas ruas, seguidos de gemidos sussurrados. As crianças tremem sob o cobertor, chorando silenciosamente para não serem pegas. Os pais, preocupados, fazem vigília com suas espingardas atrás das portas. Pouco antes do nascer-do-sol, alguns homens se aventuram a procurar a criatura, armados. Invariavelmente, encontram um corpo estendido em algum canto, ensanguentado, destroçado. Nem sinal do assassino.

Nesta noite, cansado de chorar a morte, Ed decidiu não se deitar. Armou-se de sua espingarda, despediu-se com um beijo de seu filho que dormia e honrou sua mulher falecida. Pela primeira vez seus olhos não se umedeceram. Lágrimas de saudade, de ódio e de dor haviam secado.

Abriu a porta de casa, trancou-a com chave e cadeado e espetou barras de metal afiadas em vãos devidamente preparados para a ocasião. Qualquer um que se aproximasse inadvertidamente de sua porta teria o corpo preso e trespassado pelas barras. Antes de se afastar, olhou mais uma vez para casa. Suspirou. Sentiu uma imensa pontada de angústia perpassar sua espinha. Apesar da segurança conferida, sentiu que não gostaria que o monstro tentasse se aproximar daquela porta. Temia por seu filho. Quanto a si, poderia morrer em combate, desde que arrancasse ao menos um braço do demônio que matara sua mulher. Caminhou até a praça, cabeça erguida, arma às costas, lanterna em mãos, sem olhar para trás.


***********

Esta noite estava especialmente estrelada e fria. O vento cortante diminuía ainda mais a temperatura dando uma sensação térmica de quase zero graus. Ed saiu sem seu casaco como o combinado, mas não se sentia gelado.

Quatro homens se encontravam na praça, usando apenas roupas leves, que lhes permitissem correr, e suas armas. Em um dos bancos, três garrafas de aguardente para esquentar o corpo. As garrafas já se iam pela metade quando Ed chegou e se juntou a eles.

- Mais um aventureiro - disse um dos homens, oferecendo a Ed uma dose.
- Antes isso fosse uma aventura, Rich - respondeu, pegando a dose e tomando-a de um só gole.

Rich, um homem alto, de barba mal feita e dentes podres era um dos policiais responsáveis pela vigília noturna. Obviamente, em noites de lua cheia apenas se encarcerava na delegacia e esperava o dia voltar. Nessa noite, no entanto, ele e alguns homens decidiram pôr fim ao medo, ou morrer.

Rich, Eliot, Gustavo e Henry, além de Ed, foram os únicos a aparecer na hora marcada, dos 20 homens que se proporam a arriscar suas vidas.

- Bando de bunda mole - disse Eliot, carregando seu revólver. Que não se atrevam a olhar para minha cara amanhã, caso eu ainda esteja vivo ao raiar do sol.
- Sequer se atrevam a encostar em meu corpo morto, bando de viadinhos - completou Gustavo.

Os dois encheram mais um copo de pinga e viraram. Ambos já estavam bastante alterados, e isso os encorajava realmente, mas Ed não sabia como poderiam enfrentar até mesmo uma mosca bêbados daquele jeito.

Ignorando-os, virou-se para Rich e perguntou:

- Temos uma tática, companheiro?
- Atirar e matar! - respondeu, gargalhando forçosamente.

Ed pôde então sentir a tensão sobre os ombros de Rich. O rapaz estava preocupado, quase apavorado. Ed percebera naquele momento o medo que espreitava o amigo por trás de seus olhos. Suas mãos tremiam levemente, e não era pelo frio. Ed às vezes sentia o medo de outras pessoas, e isso agora o aterrorizava. Já bastava o seu medo por aquela noite, mas tinha também que sentir por Rich?

- Amigo, não se preocupe - disse Ed em tom de consolação. Apenas viva essa noite como se fosse a última. Não pense se estará vivo pela manhã. Considere-se desde já um homem morto e isso lhe tirará o medo. Pois, que há de se temer mais que a própria morte?

Rich pensou por um momento.

- A morte dos meus? – o rapaz abaixou a cabeça e ameaçou um choro.

Ed conhecia o amigo e sabia o quanto os filhos e a esposa de Rich eram amados por ele. Mas ainda que não soubesse disso, tinha certeza de que eram verdadeiras e sinceras as palavras do amigo, por sua própria experiência. A morte dos seus era sem dúvida mais dolorosa que a sua própria.

A noite adentrou a vila e a lua subiu no céu, imensa e iluminada. O silêncio pairou sobre os ombros daqueles homens. Havia alguns minutos que nenhum deles ousava pronunciar uma palavra. O temor tomava conta de seus corações, e silenciar-se era a melhor forma de sentir o medo em todo a sua plenitude. E, estranhamente, essa sensação os completava. Eram homens íntegros e aquela noite exigia medo, dos mais brutais. Não podiam fugir dele, não essa noite.


***********


Quando a hora chegou – os ataques aconteciam sempre próximos à lua alta -, Ed e seus companheiros armaram-se e partiram para os limites da vila. Não conheciam a criatura, não sabiam de onde vinha. Imaginavam que deveria vir de fora da cidade, pois dentro ninguém a via durante o dia. A vila era afastada de todas as outras cidades. Apenas duas estradas davam acesso a ela e em volta havia uma paisagem quase desértica. Isso facilitaria a visualização da fera, permitindo a antecipação dos caçadores. Decidiram se dividir em dois grupos. Ed e Henry foram para o sul, enquanto Rich, Eliot e Gustavo cobriram a parte norte.

- Eis a sua grande chance, amigo – disse Henry, enquanto acendia um cigarro de palha e dava uma tragada.

- Para quê? – respondeu Ed, despretensiosamente, apesar de saber a resposta.

Sim. Ed sabia o que todos sentiam sobre ele. O rapaz já fora o homem mais bem sucedido das redondezas. Não era rico, não tinha muitos bens. Não era sobre isso o seu sucesso. Ed era o cara mais... Na verdade, Ed era o cara. Uma esposa maravilhosa. Um filho lindo e saudável. Respeitado padrão de vida, bem visto e bem quisto por todos. Era o tipo de pessoa a quem se procurava quando se precisava de uma mão. Sempre disposto a ajudar, com sorriso largo e sincero no rosto. Ed nunca havia chorado... Até que um dia, um fatídico e inesquecível dia, a esposa de Ed foi encontrada morta, arrastada de sua casa até a estrada que ruma para o sul. Esquartejada e arranhada por garras não humanas. Foi o primeiro ataque da fera. A partir de então, em toda lua cheia, o incidente se repetia, causando pânico e terror em todos, exceto em Ed. Desde aquele dia, Ed só sentia tristeza, amargurada e sufocante tristeza, e nada mais. Ed nunca mais sorrira.

Por isso, todos comentavam entre os corredores, nas mesas de bar e em suas casas: “Pobre Ed”. E ele sabia, e desviava o olhar daqueles que lhe tinham pena. E a tristeza crescia a cada dia, junto com a fúria e o ódio ao ver a fera atacar novamente, e novamente, e novamente.

- Para a sua vingança – retrucou Henry, cortando seus pensamentos.

Ed carregou a espingarda com duas grandes balas. Corrigiu a postura, acelerou e firmou os passos. Sem olhar para trás, sem encarar Henry, gritou em alta voz:

- AQUELA FERA VAI SE ARREPENDER DE TER NASCIDO, HENRY. CERTAMENTE VAI.

E acelerou ainda mais o passo para que o amigo não percebesse o soluço contido. Enraivecido e tentando conter os sentimentos, Ed, de repente, sentiu uma dor afiada no meio da cabeça e caiu no chão. Ouviu Henry gritar alguma coisa incompreensível e apagou.


**********


A vila era pequena, de forma que Rich e os outros ouviram tiros serem disparados no outro canto. Juntamente com os tiros, podia-se ouvir gritos vindos de dentro das casas. As pessoas acordavam, as luzes se acendiam, e a esperança contida de que não haveria mortes naquela noite se esvaía. Os primeiros gritos geraram mais gritos, e mesmo aqueles que acordavam sem ouvir o tiro já sabiam que tinham motivos para chorar, gritar e desesperar.

Rich, Gustavo e Eliot correram o mais rápido que podiam. A embriaguez desapareceu assim que o pânico medo tomou conta de seus corações. Corriam como se disso dependesse suas vidas.

Antes de virar a última esquina que daria plena visão à entrada sul da cidade, Rich parou os homens que o seguiam na corrida, pediu para que respirassem e sussurrou as palavras que dissera a Ed mais cedo:

- Atirar e matar, meus amigos. Se virem alguma coisa, atirar e matar! Um, dois, vai!!!

Rich virou-se de supetão apontando a arma para o horizonte. Apontou para o vazio do deserto. Não havia ninguém ali a não ser o corpo sem vida de Henry, segurando sua arma em uma mão e o outro braço esticado. A arma de Ed também estava ali, mas não havia sinal do companheiro. Quando Rich se aproximou, viu algo que lhe gelou o coração.

Aparentemente, Henry, antes de dar o último suspiro, tivera tempo de deixar um recado. Em letras de sangue, havia uma frase no chão:

“Matem Ed”.

2 comentários:

  1. CA-RA-CASSSSSS!!! Que final foi esse?!!??!
    Tô de cara!!! =P
    É isso mesmo que tô pensando?!
    Que loucooo!!!
    Que maaaaaaaaassa!!!
    Vou ler de novo... =P

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  2. Caraca!!!
    Muuuuuuuuuito bom!
    Bom? Bom que nda! Excelente!
    "Ed era o cara" ???
    Ed não era ninguém!
    MIGUEL É O CARA!

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