segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sobre farsa, teatro e poder

Everything you know is about to change!

O silêncio era interrompido apenas pela leve batida de canetas sobre as mesas. Toda a comissão permanecia inquieta, angustiada, mas ninguém ousava proferir palavra. Estavam em um dos plenários do Centro de Convenções. A sala semi-circular descia gradualmente da porta de entrada até o palanque central. A cada degrau, uma fileira de mesas beges se estendia de um lado e de outro, com cadeiras pretas giratórias à sua frente. Em cada cadeira, uma autoridade mundial, calada, impotente.

Embaixo, logo atrás do palanque central, um imenso painel eletrônico exibia as palavras: ALERTA MÁXIMO! REUNIÃO EXTRAORDINÁRIA!

Lia levantou-se de seu posto, atrás da mesa central do plenário e andou até os pés da escada. As demais autoridades desviaram o olhar, desinteressados, e aguardaram o pronunciamento da Secretária de Assuntos de Defesa Mundial. Já estavam a horas em reunião, e depois de discussões acaloradas, concluíram que nada podiam fazer. Restou apenas o silêncio e a espera.

Lia respirou fundo e começou a dizer:

- Não podemos nos desesperar, meu colegas. Somos responsáveis pelas pessoas que estão lá fora...

- Somos o quê? - interrompeu um homem alto, barba e cabelos grossos e brancos. Tinha um sotaque russo, ou alemão. - Somos o quê, Sra Lia?

- Responsáveis pelas...

Antes que ela pudesse completar, o homem-russo deu um forte tapa na mesa levantando-se ao mesmo tempo. A cadeira caiu atrás dele, produzindo um baque leve e todos os olhares se viraram para ver a sua fúria. Ninguém se assustou, ninguém gritou quando o homem sacou uma arma do coldre sob a camisa e mostrou para o plenário. Ninguém se importaria se houvesse um assassinato ali. Isso não mudaria nada, e em poucos minutos já não faria diferença. Mas o homem-russo não atirou.

- Olha para esta arma, Dra. Olha para cada um aqui. Sabe o que somos? Nada! Não somos mais do que o povo assustado lá fora. Somos pó, nada mais que pó. Então, desça de sua prepotência arrogante e reconheça de uma vez por todas que tudo está acabado. Não há mais o que fazer. Essa farsa de Defesa Mundial nunca foi mais do que teatro. Teatro e nada mais.

- Teatro! - disse um indiano, do outro lado do plenário. O indiano permanecia sentado, cabeça apoiada sobre a mão direita, enquanto desenhava qualquer coisa com a mão esquerda em um papel à sua frente. - Defesa Mundial - continuou -, como se o mundo não estivesse mais seguro sem a nossa presença.

- Senhores, temo que vocês não percebem a dimensão dos acontecimentos.

- Quem não percebe algo aqui é a Sra, Dra Lia.

Quem interrompia era uma mulher baixa, de cabelos claros e olhos arredondados. Com pouco mais de um metro e meio, a mulher precisava se ajoelhar na cadeira para poder ser vista.

- A dimensão dos acontecimentos? Pois, a dimensão dos acontecimentos nos indicam apenas isso: não há mais o que fazer. Nós falhamos em...

- Não falhamos! - interveio o homem-russo. - Fomos extremamente eficientes no que nos propomos a fazer. Enriquecemos, adquirimos poder - deu uma forte gargalhada ao pronunciar a palavra poder -, e destruímos tudo o que havia em nossa volta e que não nos podia ser útil...

- Poder... - o homem da Índia repetiu, compartilhando da gargalhada do homem-russo. - Quanto poder... que é agora o poder que julgamos ter, se não podemos dar rumo às nossas próprias vidas?

O silêncio voltou a pairar no ambiente. Alguns estavam cabisbaixos, provavelmente pensando sobre como haviam sido estúpidos ao confiar em um poder que nada tinha de grande. Outros apenas pensavam em suas famílias, deixadas em outro país, fadadas a perecer da mesma maneira.

Lia se mantinha em pé, impassível ante as argumentações dos colegas. Mas também calou-se, pois não havia mais o que dizer. Teatro, farsa, poder, defesa mundial... essas palavras caíam pesadamente sobre seus ombros e ela tentava sustentá-las com toda a força de seu coração. Mas era tudo tão pesado! Carregar o fardo da vida de bilhões de pessoas! Ó, como era pesado!

Seria tudo uma grande farsa? Será que nunca estivera de fato, cuidando da vida das pessoas? Os perigos, atentados, guerras, seriam apenas teatros cujos atores eram marionetes manipuladas por poderosos mais poderosos? Tudo teatro, tudo farsa... e ela doando sua vida por um propósito que julgava grandioso, lutando por dar sentido à sua breve existência. E agora tudo ruía, desmoranando como um edifício construído sobre areia. E mesmo que não fosse tudo teatro, agora de nada valia.

E a secretária de Assuntos da Defesa Mundial chorou, querendo apenas ter alguém a quem abraçar. Querendo apenas ter vivido uma vida em que alguém se importasse com ela, e ter tido alguém por quem ela se importasse, pessoalmente.

E, de repente, o silêncio do plenário foi invadido por um estrondoso trovão e uma chuva estranhamente forte. As janelas se quebraram e a sala foi invadida por pingos ácidos e um vento impetuoso. Alguns correram desbaratinadamente, gritando. Mas nem seus gritos podiam ser ouvidos mais.

O homem-russo permaneceu imóvel, com as mãos sobre a mesa e o corpo levemente inclinado. Sorria sarcasticamente.

Lia encolheu-se aos pés da mesa central e ali ficou, chorando.

O indiano aprumou-se sobre a mesa e sentou-se de pernas cruzadas. Olhava para a sala e a correria das autoridades. E ali permaneceu, esperando até que toda a farsa do mundo que conhecia acabasse.

E aos poucos tudo mudou. E nada do que foi restou.

2 comentários:

  1. ok...não ha nexo entre os textos e nem nos textos né?!?!
    Chuva de Sapo?
    =D

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  2. Não há nexo é na nossa busca pelo ïmpermanente"...
    O texto me pareceu uma linda reflexão sobre isso, e sobre as formas "russas", "Lias", "indianas" e tantas outras mais que encontramos de encarar a falta de nexo... Tia Nena.

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