Na delegacia de polícia.
- Então, o senhor me diz que o fez por legítima defesa, é isso? - perguntou o delegado.
- Sim, senhor - respondeu o réu, um homem bem trajado, boa aparência, com pinta de experiente.
- O senhor estava com uma arma na mão, o homem veio correndo em sua direção com uma faca... e você deu um tiro certeiro em sua cabeça, não é?
- Exatamente, senhor.
- E você o fez por legítima defesa.
- Sim, senhor.
O delegado deu uma breve volta na frente do acusado, antes de dirigir-lhe novamente a palavra.
- Você não pensou em correr?
- Não, senhor. O homem era muito rápido.
- Hm... E não havia outra alternativa?
- Não enxergo outra alternativa, senhor.
- Nem agora? Digo... se você tivesse dias para pensar, antes que o homem te alcançasse, ou se soubesse que ele iria te surpreender em algum momento, você não encontraria outra alternativa?
- Não, senhor. Repito que não enxergo outra alternativa.
Mais um minuto de silêncio. Mais uma volta do delegado. O acusado permanecia sentado, calmo.
- Você tinha uma arma. Ele tinha uma faca. Você deu um tiro na cabeça. Na cabeça, repetiu o delegado.
O acusado permaneceu calado.
- Você não poderia atirar, sei lá, no joelho? Ele cairia e você sairia correndo...
- Pensei nisso, senhor. Mas... eu poderia errar e ele poderia me alcançar...
- Um minuto - interrompeu o delegado. - Deixa eu tentar entender. Você pensou em acertar o joelho, teve medo de errar, então pensou em acertar a cabeça, e acertou!!! - a última palavra do delegado foi quase gritada.
- Sim, senhor - repetiu desconcertado o acusado.
- Me parece que você é um atirador competente. Por que teve medo de errar?
- Olha, seu delegado... - o homem começou a falar. Calou-se e repensou as palavras - Ainda que eu acertasse o joelho dele, ele poderia acabar sangrando até a morte... não haveria ninguém para ajudá-lo depois... e mesmo que ele sobrevivesse, o cara ia ficar sem uma perna pra sempre.
- Homem!!! - desta vez o delegado gritou - Para não deixá-lo sangrando, o que poderia levá-lo à morte, você atirou na cabeça do cara e matou ele de vez!?!?! Pra não deixá-lo sem uma perna você o deixou sem vida?!?!?!
O acusado apenas abaixou a cabeça, mas não havia arrependimento em seu olhar. O delegado andava de um lado para o outro, colocando as mãos sobre a cabeça e respirando forte.
- Além disso - disse o acusado, para se defender -, eu fui surpreendido. O homem já estava muito próximo de mim e ainda que eu acertasse o joelho dele, ele poderia acabar me matando mesmo assim. Sei lá, talvez jogasse a faca ou talvez caísse em cima de mim, cravando a faca no meu peito...
- Ele poderia... Talvez... Talvez... Em vez de dar o benefício da dúvida, você apenas atirou...
- Olha, foi de repente - disse, ofegante, o acusado. Eu não senti que tinha tempo. Quando vi o cara chegando com a faca na mão, parece que tudo ficou meio escuro, entende? Eu não consegui distinguir minha ações, minhas emoções. Eu mirei, fechei o olho e atirei...
O delegado finalmente parou. Aproximou-se da mesa onde estava o acusado. Olhou com ar piedoso para ele e recapitulou a história:
- Foi de repente. O homem veio com uma faca na mão. Tudo ficou escuro em sua mente, porque você ficou nervoso, sem saber o que fazer. Então fechou os olhos e atirou. Você tem certeza de que esse homem queria te acertar? Digo, foi tudo tão de repente. Como você percebeu que ele corria em sua direção pra te acertar?
O acusado respirou fundo.
- Ele não queria me acertar, ...
- Então ele era inocente? - interrompeu perplexo o delegado.
- ... mas ia acabar me acertando...
- ...
- ... a menos...
- A menos que você tomasse qualquer uma das atitudes que discutimos agora pouco - completou o delegado, antes que o acusado continuasse.
Calaram-se.
- Qualquer outra atitude seria incerta.
- Sim - concordou o delegado -. E você preferiu escolher o certo errado pelo incerto certo.
- ...
- Só mais uma pergunta antes de terminarmos - disse o delegado com a mão na maçaneta, prestes a abrir a porta.
- À vontade.
- Você sabe a identidade do homem que matou?
- Sei - respondeu baixo o acusado.
- Você sabia na hora em que atirou?
- Sabia - sua voz saiu embargada.
- Muito bem. Você está dispensado.
O acusado levantou-se e caminhou até a porta. Antes que saísse, o delegado disse uma última palavra:
- Ah, estão te esperando no IML para assinar os papéis e identificar o corpo.
- Eu tenho mesmo que ir?
- Sim, tem. Você era o único responsável por ele.
O delegado abriu a porta. O acusado saiu.