segunda-feira, 11 de julho de 2016

A plateia atenta. Espera. O silêncio que precede a apresentação sempre foi a maior barreira entre João e a arte. O fôlego que falta, a dúvida, a desconfiança de estar no lugar errado. Um rio de possibilidades passava em sua cabeça. Ele poderia estar deitado na cama, jogando computador; ele poderia estar em um restaurante com uma amiga bonita, fazendo joguinhos de conquista; poderia estar estudando para Uma prova de concurso; ele poderia... ele poderia. Ele poderia tantas coisas mais fáceis e cômodas do que estar ali diante de uma plateia em silêncio, à espera que suas palavras os satisfaçam. 

E se ele não os satisfizer? E se eles o acharem bobo, enfadonho, sem graça? Rir! João sempre pensava que o melhor caminho era fazê-los rir. Tinha meia dúzia de truques engraçados, piadas prontas que sempre davam certo, com crianças ou adultos. Eram uma carta na manga. a qualquer momento ele poderia tirá-la. Mas tentaria ser fiel ao enredo que preparou, apesar do silêncio que via à sua frente e que o esmagava. 

Às vezes a plateia parecia um imenso bicho-papão, como nos seus sonhos de criança. Estavam ali na sua frente, prontos para devorá-lo. João precisava saciar sua fome antes de virar seu alimento. Quando criança, sonhava com o bicho-papão - às vezes era o Freddy Krueger - aparecendo sorrateiro e ameaçando captura-lo. João corria, mas não saía do lugar. Desespero. Tensão. Medo. Depois de muito se esforçar, decidia que não valia a pena continuar tentando fugir. Era então que o monstro se aproximava cada vez mais e João se surpreendia com uma grande ideia: se ele queria comida, comida teria. João jogava todas as coisas que via por perto na direção do bicho: mochila, móveis, roupa. Ficava nu. Sem vergonha. O bicho comia tudo que aparecia na sua frente. E então ia embora. João intocado. Num último desses sonhos, quando João já havia adolecido e sabia que bichos-papão era história para botar medo em criança, João sonhou que jogava pipocas para o bicho. Pipocas. Ele jogava pipocas e ria do bicho comendo. O bicho ria junto. João e o bicho papão comendo pipocas. Sorrisos. Essa última imagem o confortava nos silêncios que precediam as apresentações. Sorria só. 

A plateia não era bicho-papão, mas precisava se satisfazer, era para isso que estavam ali. João não deveria jogar qualquer coisa, móveis, mochilas, roupas... Não. João deveria amá-los como às pessoas mais importantes de sua vida. Pelos próximos 50 minutos, eles seriam as pessoas mais importantes de todo o mundo. João não jogaria nada, mas partilharia tudo. Faria um delicioso bolo com todos eles, e todos comeriam o bolo junto.

A plateia. 

O silêncio.

O chapéu.

- Há muitas histórias no mundo - João levantava os braços. - Histórias que enchem o ar - Balançava as mãos enquanto dava uma volta completa com o corpo. - De todas as histórias do mundo - apontava o dedo indicador para os presentes, uma e outra vez. - Uma delas - pegava o chapéu -, eu acabei de pegar - capturava qualquer coisa no ar com o chapéu.

As crianças admiradas. Os adultos, por enquanto, olhavam satisfeitos por que as crianças pareciam satisfeitas.

- Olha aí, filho - alguém cortava o silêncio -, ele pegou uma história no chapéu.

A criança não respondia. Absorta.

João colocava a mão dentro do chapéu e fingia tirar uma bola, jogando-a no chão e soprando sobre ela, com ares de mistério. Imaginamento. Encantação. Ali, entre João e a plateia, o espaço se fazia história. João lançava palavras como música. Toda habilidade que nunca tivera com os instrumentos, tinha com a voz. Não para cantar, mas para contar. Aquela primeira barreira - o frio na barriga antes de começar a contar a história - se desvanecia e dava lugar a um gozo sem fim. Ele poderia estar fazendo qualquer outra coisa. Ele poderia estar estudando, saindo com uma bela garota, jogando computador... Não! Ele não poderia estar fazendo qualquer outra coisa. Ele só poderia estar ali. Pleno.

Os olhares das crianças. A admiração dos adultos, que já se entregavam por completo à experiência. Compenetração. À medida que falava, um castelo se formava entre contador e ouvintes. Princesas, um pássaro de todas as cores, animais falantes que queriam conhecer o sabor da lua... Mágica. Paixão.

- E é assim - encerrava agradecendo com um leve curvatura, mão no peito - que essa história chega ao fim.

O silêncio que procede a história. O tempo necessário para se decantar a experiência. As palmas. João sempre pensou que as palmas eram uma pena. A história não pede para ser aplaudida, pede para ser contemplada, meditada. João gostava das histórias que faziam acordar, a cor dar. As palmas quebravam a reflexão, faziam-nos voltar ao preto-branco-e-cinza da realidade. Os silêncios que procedem as histórias deveriam ser eternos. Ou, pelo menos, durarem o tempo necessário para que as histórias se fizessem verdade dentro de cada um.

Mas as palmas vinham. E então, a plateia dispersava.

O silêncio do fim de mais um ato. A satisfação. Um sorriso que brota de dentro.

Completude.

Nenhum comentário:

Postar um comentário